Malleus Maleficarum
Malleus Maleficarum | |||||
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O Martelo das Feiticeiras | |||||
Malleus Maleficarum Maleficat & earum haeresim, ut framea potentissima conterens | |||||
Malleus Maleficarum edição veneziana de 1576 | |||||
Autor(es) | Heinrich Kraemer e James Sprenger | ||||
Idioma | Latim | ||||
País | Alemanha | ||||
Assunto | Religião | ||||
Gênero | Manual de perseguição | ||||
Lançamento | 1487 | ||||
Cronologia | |||||
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"Martelo das Feiticeiras o qual destrói as bruxas e a sua heresia, como uma espada de dois gumes" (do latim "Malleus Maleficarum, Maleficas & earum haeresim, ut framea potentissima conterens"), ou apenas Malleus Maleficarum, também conhecido comumente como O Martelo das Bruxas, ou O Martelo das Feiticeiras,[1][2] é um livro, ou manual inquisitorial, publicado em 1486 ou 1487[2][3] pelo dominicano, Heinrich Kraemer (também conhecido por Heinrich Institoris[4]) e por James Sprenger, na Alemanha, em cumprimento à bula papal Summis Desiderantis Affectibus de Inocêncio VIII e, segundo uma fonte, a pedido deste[5] — sobre um manual de combate aos praticantes de heresias — e que tornou-se o guia dos inquisidores pelo restante do século XV e seguintes; embora no período existam outros manuais, este é um dos mais cruéis, ensinando sobre o ódio, tortura e morte.[5]
Segundo alguns autores, o Malleus Maleficarum nunca teria sido aceito pela Igreja, sendo incluído no "Índice dos Livros Proibidos" do catolicismo (do latim "Index Librorum Prohibitorum") e seus autores teriam sido excomungados.[6][7] Contudo, outros autores, como Åsa Bergenheim, sustentam o contrário: o primeiro Index só foi publicado depois de 1559,[8] e não incluía o livro, que também não se encontrava nas edições posteriores do Index. Por outro lado, Heinrich Kraemer foi censurado pela Inquisição em 1490 por recomendar métodos antiéticos e ilegais, e por não seguir as doutrinas ortodoxas da igreja relativamente à demonologia,[9][10] mas nunca foi excomungado e gozou até de bastante prestígio.[11][12]
O livro é dividido em três partes; na primeira, relata as propriedades do demônio e sua ligação com a bruxaria; a segunda trata de como lidar com os malefícios durante o dia-a-dia; finalmente, a terceira parte faz a descrição de como proceder aos julgamentos e como cumprir as sentenças.[5]
Apesar de seu conteúdo obscuro, é uma obra da Idade Moderna, havendo surgido poucos anos antes da viagem de Colombo e contemporânea da obra de Pico della Mirandola, base do humanismo florentino.[13]
Embora o livro original traga uma dupla autoria, modernamente é consenso que o papel do então renomado autor Sprenger na escrita deste livro deva ser mínima.[4]
Precedentes históricos
[editar | editar código-fonte]Muitas leis europeias bastante antigas já traziam artigos punindo as práticas mágicas — como por exemplo a lei sálica, de Clóvis ainda no século V que prescrevia várias multas para as práticas de bruxaria, especialmente as mortais ou referentes ao nó da bruxa.[14]
Em 1326 o papa João XXII emitiu a bula Super Illius Specula, na qual a bruxaria passou ao rol de heresia já que, segundo as doutrinas em voga, suas práticas implicavam em pactos demoníacos e infidelidade com a fé cristã — o que autorizava a Inquisição a tratar de seu combate.[15]
Durante todo o século XV então em várias regiões surgiram processos contra a feitiçaria, bem como tratados de demonologia foram sendo publicados.[15]
Várias bulas foram publicadas por João XXII e Bento XII (do Papado de Avinhão) que tratavam de formas como lidar com as bruxarias, anatematizando essas abominações; também trataram do tema Gregório XI, Alexandre V e Martinho V; Eugênio IV emitiu quatro bulas que iam contra a feitiçaria e a magia negra, a primeira delas para o inquisidor florentino Pôncio Fougeyron; Nicolau V, em 1 de agosto de 1451 emitiu uma bula ao inquisidor dominicano Hugo Niger; a lista se encerra com as bulas emitidas por Calisto III e Pio II, que denunciavam a necromancia.[14]
Digno de nota é que Alexandre IV enviou duas bulas, primeiro aos franciscanos e depois aos dominicanos, em 1258 e 1260, dizendo para que se esquivassem de julgar casos de feitiçaria, salvo quando tenha ficado patente que se tratava de clara heresia.[14]
Foi contudo quando subiu ao trono papal Francesco della Rovere como Sisto IV que as feiticeiras passaram a ser vistas como integrantes de um complô internacional através de sociedades de bruxas, e foi o responsável pela nomeação de Torquemada como Grande Inquisidor de Castela e, finalmente, sua bula Summis desiderantes affectibus, que deu aos inquisidores poderes que até então eles não possuíam.[14]
A mulher como instrumento do Diabo, para Institoris
[editar | editar código-fonte]A maior inovação da obra do inquisidor Institoris (Kraemer) foi justamente atribuir exclusivamente à mulher a condição de "bruxa" — o que inicialmente não foi aceito mesmo por seus contemporâneos; antes da publicação do livro, e de posse da bula papal, ele havia empreendido esforços para processar mulheres suspeitas de bruxaria, lançando-se numa vigorosa investigação em Innsbruck mas, apesar de alegar ter encontrado uma cidade repleta de feiticeiras, as autoridades locais mostraram-se relutantes em fazer qualquer coisa contra elas; também os magistrados e o próprio bispo, Georg Golser, foram-lhe hostis na pretensão punitiva, em outubro daquele ano.[4]
Durante um interrogatório preliminar Institoris procurou conectar um desvio sexual feminino com a bruxaria, e o fez de tal forma que pareceu ofensivo aos seus anfitriões, que se mostraram claramente relutantes em aceitar a condição de bruxas como ele entendia; um autor chegou a comentar que Institoris reivindicava algo que não poderia provar; o fato foi que com todo o clima contrário, junto aos ardis de um advogado e a erros processuais cometidos pelo próprio Institoris, os seus processos ali foram arruinados.[4] Ele insistiu em tentar reavivar os processos, mas só obteve negativas e finalmente recebeu uma ríspida ordem episcopal para sair da cidade, ou ficasse para sofrer a ira das famílias cujas esposas e filhas ele tinha ofendido.[4]
Como resposta a este tratamento tão adverso ele escreveu seu tratado, o Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas que, assim como seu trabalho inquisitorial fracassado, não foi geralmente aceito — no qual procura de forma sistemática e abrangente descrever as bruxas, seu caráter e comportamento e ainda expor um resumo das medidas legais e espirituais a usar contra elas.[4]
Não existem bruxos, só bruxas
[editar | editar código-fonte]É marcante na obra de Institoris que a bruxaria era algo exclusivamente feminino — enquanto outros autores da época consideravam que as mulheres eram apenas propensas à superstição — ele foi além, afirmando que os pontos fracos tornavam a mulher passível às ciladas do Diabo, em corpo e espírito — sendo o único inquisidor até então a ligar a bruxaria como algo inerente com o sexo feminino; isto para ele era algo simples, um fato verificado por meio de sua própria experiência e pelo senso comum — e qualquer prova em contrário era prontamente posta de lado por ele.[4]
O Malleus, fruto deste pensamento, trata a existência de bruxos como algo minimizado, como realmente exceções; os magos, por exemplo, não são bruxos ou porque eles só usam de poderes naturais ocultos ou porque estão iludidos pensando que agem sob comando ou influência do demônio: eles, ao contrário das bruxas, jamais poderão estar ligados ao Diabo, pois isto só ocorre por meio de um pacto explícito selado com a relação sexual, desconsiderando portanto a homossexualidade.
Assim, Institoris chama os homens que trabalham com as formas populares de magia de "superstitiosi" ou de "magi", em vez de bruxos ("malefici"); caso lapidar, diz ele, foi o de um homem chamado Hengst que era famoso pela cura dos males frutos de magia, a ponto que multidões iam consultá-lo mesmo no auge do inverno — e como ele próprio dizia antes que apenas as bruxas tinham o poder de remover os malifícios, poder-se-ia concluir que seria tratado como "bruxo" — mas não: ele diz que Hangst era um mero supersticioso.[4]
Ao interpretar o Formicarius, de Johannes Nider, mesmo quando no original se diz que um "maleficus" confessara ter convocado o Diabo para matar um inimigo, Institoris evita cuidadosamente em falar em "bruxo", referindo-se a ele de forma indireta.[4]
Nenhum tratado anterior foi tão enfático em mostrar o sexo feminino como instrumento satânico quanto este; pode ser considerado um marco na demonização da mulher, expondo-a à perseguição e ao castigo.[16]
Conteúdo
[editar | editar código-fonte]Embora desde a antiguidade, e em muitas culturas além da Europa, a mulher fosse temida, isto só atingiu seu ápice quando ela teve reconhecido o seu papel como agente demoníaco, e nenhum outro tratado foi tão específico neste mister quanto o Malleus, foi um marco na demonização da mulher e das práticas religiosas populares, sendo o manual da maioria dos inquisidores durante a "caça às bruxas".[16]
Assim é que Institoris afirma, pela primeira vez: “É um fato que maior número de praticantes de bruxaria é encontrado no sexo feminino. Fútil é contradizê-lo: afirmamo-lo com respaldo na experiência real, no testemunho verbal de pessoas merecedoras de crédito.”[16] Ele embasa suas ideias colocando a mulher como herdeira do pecado original: “[…] em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente.”[16]
A falta de memória das mulheres, segundo o Malleus, é uma das causas para sua propensão ao mal — já que não conseguem guardar muitas coisas nas lembranças, seguem mais seus impulso e instintos, estando muito mais afeitas a cair em pecado: "E, com efeito, assim como, em virtude da deficiência original em sua inteligência, são mais propensas a abjurarem a fé, por causa da falha secundária em seus afetos e paixões desordenados também almejam, fomentam e infligem vinganças várias, seja por bruxaria, seja por outros meios. Pelo que não surpreende que tantas bruxas sejam desse sexo."[16]
Institoris deixa claro a origem feminina do mal, e qual motivo absolve os homens: "Há três coisas insaciáveis, quatro mesmo que nunca dizem: Basta! A quarta é a boca do útero. Pelo que, para saciarem a sua lascívia, copulam até mesmo com demônios. Poderíamos adiantar ainda outras razões, mas já nos parece suficientemente claro que não admira ser maior o número de mulheres contaminadas pela heresia da bruxaria. E por esse motivo convém referir-se a tal heresia culposa como a heresia das bruxas e não a dos magos, dado ser maior o contingente de mulheres que se entregam a essa prática. E abençoado seja o Altíssimo, que até agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como Ele veio ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós homens, esse privilégio."[16]
O livro de Kramer também alegava que as bruxas tinham a capacidade de roubar o pênis dos homens por meio de ilusões. Numa das suas afirmações mais bizarras, alegou que pessoas costumavam encontrar 20 ou 30 pénis juntos, como um ninho de pássaros, que rastejavam e se alimentavam de grãos.[11]
Edições recentes
[editar | editar código-fonte]No Brasil foi publicado pela editora Três em 1976 com o título Malleus Maleficarum: Manual de Caça às Bruxas e, posteriormente, pela editora Rosa dos Tempos com o título O Martelo das Feiticeiras.
Ver também
[editar | editar código-fonte]- Mulher na história
- Caça às bruxas
- Thomas Szasz
- História da loucura
- História da psiquiatria
- Idade Média
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- Burns, William E.(2003) - Witch Hunts in Europe and America - An Encyclopedia - Greenwood Press
- Kramer, Heinrich e Sprenger, Jacobus - Malleus Malleficarum. Republicação integral (em inglês) da edição de 1928, contendo a introdução da edição de 1948 e uma bula de Inocêncio VIII de 1484. (tradução de Montague Summers)
- Kramer, Heinrich e Sprenger, Jacobus - Malleus Malleficarum: Manual da Caça às Bruxas. Ed.Três, São Paulo, 194pp, , 1976.
Referências
- ↑ Rose Marie Muraro. «O Martelo das Feiticeiras». DHnet. Consultado em 16 de fevereiro de 2016
- ↑ a b Thais da Silva Osga. "Revisitando a Inquisição: Das Condições Necessárias para o Ressurgimento do Manual Malleus Maleficarum no Século XX" (PDF) . Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Acessado em 16/12/2020.
- ↑ Institucional. «The Hammer of Witches: A Complete Translation of the Malleus Maleficarum». Cambridge University Press. Consultado em 16 de fevereiro de 2016
- ↑ a b c d e f g h i Hans Peter Broedel (2002). «To Preserve the Manly Form from so Vile a Crime: Ecclesiastical Anti-Sodomitic Rhetoric and the Gendering of Witchcraft in the Malleus Maleficarum». Essays in Medieval Studies, n. 19, pp. 136-148. Consultado em 16 de fevereiro de 2016. Arquivado do original em 14 de dezembro de 2015
- ↑ a b c Márcia Cristina Rodrigues (21 de março de 2012). «Malleu Maleficarum - a bruxaria como afirmação do poder espiritual» (PDF). Revista Brasileira de História das Religiões, ISSN 1983-2850. Consultado em 16 de fevereiro de 2016 Obs: Texto em Creative Commons, com atribuição requerida.
- ↑ «8 fatos insólitos sobre a Igreja Medieval». Superinteressante. Consultado em 16 de dezembro de 2020
- ↑ Ludmila Noeme Santos Portela. "Malleus Maleficarum: bruxaria e misoginia na Baixa Idade Média" (PDF) . Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Setor de História Social das Relações Políticas. Acessado em 16/12/2020.
- ↑ «Index Librorum Prohibitorum». Britannica (em inglês). Consultado em 5 de fevereiro de 2023
- ↑ Bergenheim, Asa. «The Lecherous Witch: Evil, Witchcraft and Female Sexuality in Early Modern Sweden» (PDF). Consultado em 18 de Dezembro de 2020
- ↑ Lovelace, Wicasta. «Introduction (Malleus Maleficarum)». Malleusmaleficarum.org. Consultado em 18 de Dezembro de 2020
- ↑ a b Burns, William E. (2003). Witch Hunts in Europe and America - An Encyclopedia - Greenwood Press. [S.l.]: Greenwood Press. p. 160
- ↑ Summers, Montague (2000). Witchcraft and Black Magic. [S.l.]: Dover Publications, Inc. p. 30
- ↑ Breno Martins Campos. «Fundamentalismo protestante: a invenção de uma tradição exclusivista na modernidade» (PDF). Revista Brasileira de História das Religiões, ISSN 1983-2850. Consultado em 16 de fevereiro de 2016
- ↑ a b c d Rev. Montague Summers (1928). «Introdução». Edição inglesa do Malleus Maleficarum. Consultado em 17 de fevereiro de 2016
- ↑ a b Helen Ulhôa Pimentel (janeiro de 2012). «Cultura mágico-supersticiosa, cristianismo e imaginário moderno» (PDF). ANPUH, Ano IV, n. 12, ISSN 1983-2850. Consultado em 16 de fevereiro de 2016 Obs: Texto em Creative Commons, com atribuição requerida.
- ↑ a b c d e f Juliana Torres Rodrigues Pereira (janeiro de 2011). «Bruxaria e o feminino na visitação inquisitorial ao Arcebispado de Braga (1565)» (PDF). Revista Brasileira de História das Religiões, vol. III, n.º 9, ISSN 1983-2859. Consultado em 17 de fevereiro de 2016. Arquivado do original (PDF) em 19 de fevereiro de 2019
Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- «Análise do Livro». em Canal das Ciências Criminais (JusBrasil)