Burgueses somos nós todos ou ainda menos

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Burgueses somos nós todos ou ainda menos
Autor(es) Mário de Carvalho
Idioma português
País Portugal Portugal
Gênero livro de contos
Editora Porto Editora
Formato capa mole
Lançamento 2018
Páginas 112
ISBN 978-972-0-03063-4

Burgueses somos nós todos ou ainda menos é um livro de contos de Mário de Carvalho publicado em 2018 pela Porto Editora.

Mário de Carvalho que é um dos mais importantes e prolíficos contistas nacionais, reúne neste livro onze contos revelando uma vez mais o seu olhar subtil e irónico sobre a sociedade que o rodeia. Traições e amantes, as crises (económicas, mas não só), o envelhecimento, a viuvez e a ambição são alguns dos temas por que passam as histórias destes burgueses mais ou menos desencantados.[1]

E isso na vida de uma cidade, Lisboa, com pessoas de classe média, média alta, homens e mulheres, em teias urdidas de forma a que haja espaço para silêncio e perplexidade de modo a que o leitor as possa complexificar com a sua própria experiência, leitor que está convocado para isso desde o início pelo próprio autor, numa espécie dedicatória:[2]

“A autoridade autoral (passe o étimo pleonástico) tem limites. Mas vós haveis de levar o texto a vastidões que o autor nem vislumbrou. Fareis deste livro o que ele vier a ser. A tal burguesia, sabe-se lá, poderá, afinal, ter os seus encantos...”

Título[editar | editar código-fonte]

O título Burgueses somos nós todos ou ainda menos inspirou-se em versos do poema Litania Para Os Tempos de Revolução que o então muito jovem Mário Cesariny publicou em 1959:[2]

“Burgueses somos nós todos
ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos,
desde pequenos”.

Escrito nos anos 40, mas que o poeta surrealista publicou apenas em 1959 no livro Nobilíssima Visão e onde falava, no essencial, da vidinha, o real do dia-a-dia na vida de gente com pouco que contar.[2]

Síntese[editar | editar código-fonte]

Síntese dos contos que constituem retalhos da vida, de uma sociedade, de um Portugal desencantado, sob o olhar irónico do autor:[1]

  • Um marido recalcitrante ludibriado pela mulher defunta (A amante de um recém-viúvo cheio de culpa entrega-lhe os diários que a mulher dele lhe confiou justamente a ela. Nesses cadernos, ela escreve sobre homens com quem se envolveu, semente para uma paranóia em crescendo onde se questiona a intenção e o conteúdo de tais escritos com o homem a embarcar numa investigação enlouquecida para descobrir quem foram esses amantes e a razão daquela “agressão póstuma tão perversa”);[2]
  • Um casal num jantar de amigos, elas amigas íntimas dele;
  • Um recém-viúvo percorrendo a lista das suas conquistas mais assíduas (Um homem, também recém-viúvo, propõe-se reencontrar as suas oito melhores amigas, no regresso ao seu país que é também a tentativa falhada de um ilusório regresso à juventude, as crises de sexualidade, o homem que estranha encontrar-se num almoço de antigos colegas de liceu.);[2]
  • Dois homens de meia-idade rememorando no luxo das suas casas os tempos de jovens revolucionários;
  • Doutores, engenheiros, administradores em tensão, todos em certa vivenda às Avenidas Novas, banco de grandes investimentos;
  • Uma enfermaria de hospital;
  • Cortejo e exéquias;
  • Engates de esquina;
  • Os filhos dos outros;
  • Traições e
  • Uma vingança sórdida;
“Luz pungente a dar-lhe, pertinaz agressão do branco, os recortes, vistos ao longe, teia de linhas cinzentas em quebradas geometrias. Agora, a surpresa da franja abatida dum anjo a chorar numa esquina, uma proclamação republicana — falta-lhe uma letra — escondida numa frontaria, a revoada de solas, tosses, rumorejos, dando tempo ao tempo e ao bocejo, já que não se pode dar à eternidade. Cumprido pois o rito, uma e outra vez. Deveria era ser ele mais espaçado nesta altura da vida, cada funeral em sua alínea, chavetas bem arrumadas, para que as pedras e as figuras, os mortos e os vivos não se confundissem tanto. E cada qual fosse tratado como o ser especial e único garantido em todo o nascimento.”[2]

Apreciação[editar | editar código-fonte]

Segundo Isabel Lucas, "as personagens dos 11 contos que compõem o livro de Mário de Carvalho são, sobretudo, burgueses e aqui, por burguês, talvez se deva entender gente comum, conforme a um padrão; gente fora da margem, pouco desafiadora de convenções sociais — a não ser muito secretamente, muito intimamente; gente que questiona pouco, gente banal com quotidianos mais ou menos iguais, um desejo de conforto e apreciação. Gente que, mais ou menos, pode ser cada um de nós, ou talvez nem tanto."[2]

Também para Isabel Lucas o desafio para o escritor é arriscado. "Como escrever sobre esse quotidiano de pouca acção onde o enredo tem lugar secundário face à forma de o contar, ou seja, onde o ambiente, as circunstâncias, os estados de alma merecem mais atenção do que o que se poderia chamar de trama ou mesmo desenlace, porque já sabemos que no fim se morre e irá certamente haver uma doença e, se não for doença, haverá uma traição? Enfim, o comum com algumas peculiaridades."[2]

Ainda para Isabel Lucas, "burgueses e abjectos, somos, pois, todos nós ou ainda menos no provocador jogo de espelhos que o título propõe, ou pressupõe, e que está implícito nos contos, todos percorridos por uma ironia mais negra do que aquela a que Mário de Carvalho já habituou quem o lê....São histórias de médicos, engenheiros, professores, todos às voltas com o desencanto, a amargura, a traição, o tédio e o cinismo. Casais com pouco assunto e a ganância dos filhos na hora da morte; gente em crise como a de que falava o poema de Cesariny, em narrativas perpassadas por uma melancolia quase permanente que torna o tal humor, ou sarcasmo, mais sombrio e que é o verdadeiro filtro para ler estas histórias comuns de gente mais ou menos comum, gente conforme, convencional que Mário de Carvalho descreve no estilo que aqui nunca se confunde com outro: a linguagem, a escolha de cada palavra para que seja a certa e tudo se ajuste só por causa dela, há o ritmo e algum desconforto no riso que tudo provoca a quem lê.[2]

Para João Gobern, Mário de Carvalho é "por um lado, um minucioso observador da espécie, sempre capaz de aproximar o trivial do transcendente, de desenhar miradouros inesperados sobre o mais corriqueiro quotidiano; por outro lado, um aventureiro da palavra, fadado para subverter significados imediatos e para nos enriquecer o património vocabular, sem nunca por nunca se deixar resvalar para o academismo ou para uma qualquer voluntária armadilha que faça tropeçar quem lê."[3]

Ainda para para João Gobern, é difícil "colocar em alternativa o contista e o romancista, tanto mais que não há lei que nos impeça aproveitar plenamente a ambos. No conto curto, Mário de Carvalho consegue aquilo que está reservado a quem domina o modelo: conta-nos uma história rápida, mesmo que albergue anos ou gerações, e deixa-nos, terminada a narrativa, um rodízio de curiosidades e, em muitos casos, um secreto e inútil desejo de que as coisas não se ficassem por ali....Há momentos em que temos a certeza, inabalável, teimosa, de já nos termos cruzado com esta ou aquela figura, com as mesmas reações, o mesmo preciso discurso, até com os mesmos segredos, que não ficam por revelar."[3]

E ainda segundo João Gobern, que não se confunda o trivial do título com o banal. "Todos os burgueses... que nos aparecem pela frente podiam ser nossos vizinhos, mas nós não saberíamos extrair-lhes os pormenores, as contradições, as angústias. E, ainda por cima, jamais saberíamos enquadrá-los e fazer-lhes justiça, gostando deles ou nem por isso, do jeito singular que é o carimbo distintivo de Mário de Carvalho, tão depressa impiedoso como caridoso, saltador exímio da ironia para a frieza....Nesse sentido... estamos diante de um esteta, de um descobridor, de um brilhante manipulador da Língua... Só assim se poderia pintar de esplendor e inesperado aquilo que pode estar bem à frente dos nossos olhos."[3]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. a b Nota da Editora sobre o livro, 2018-04-04, [1]
  2. a b c d e f g h i Isabel Lucas, "A sociedade actual num espelho baço", Público, 2 de Junho de 2018, [2]
  3. a b c Gobern, João (25 de Junho de 2018). «O esplendor do trivial». Diário de Notícias (Portugal)