Educação intercultural

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Educação intercultural é uma perspectiva crítica de ensino que leva em conta as diferenças e pluralismos de grupos socioculturalmente distintos com o objetivo de promover e valorizar a diversidade em contextos multilíngues e multiculturais. Não se trata, contudo, de uma metodologia ou método de ensino, mas de uma perspectiva, uma forma de compreender e abordar a educação enquanto projeto político de transformação social tendo em vista a promoção do reconhecimento e respeito às diferenças.

Contexto sul global[editar | editar código-fonte]

A partir da presença de povos de etnias distintas e da ampla diversidade sociocultural em territórios marcados pela miscigenação forçada pelo colonialismo, a concepção de interculturalidade trata de estabelecer relações de negociação e intercâmbio cultural entre grupos e práticas culturalmente distintas, constatando as hierarquias e desigualdades que permeiam as interações econômicas, culturais e políticas, bem como as estruturas institucionais que cerceiam o exercício da subjetividade dos indivíduos subalternizados.[1]
Faz-se uma distinção entre diferentes vieses de interculturalidade.[2][3] A interculturalidade relacional, que se refere a trocas culturais na esfera interpessoal, com enfoque em comparações (olhar para uma cultura a partir de outra), sem, contudo, contrariar as assimetrias de poder e conflitos sociais; a interculturalidade funcional, voltada para a assimilação de grupos subalternizados à cultura hegemônica; e, por fim, a interculturalidade crítica, que questiona as diferenças e assimetrias historicamente produzidas entre grupos socioculturais, étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual,[2] visando a construção de novas relações entre esses grupos.
Dessa forma, para além de uma simples mistura entre elementos, características e práticas culturais distintas, a intercuturalidade é um processo dinâmico e multidirecional.[1] Assim, para proporcionar uma educação intercultural, desenvolve-se um trabalho de autoconhecimento, para que os aprendizes tenham ciência de suas próprias identidades, bem como dos processos histórico-culturais que as constituem. Visando que as diferenças se façam visíveis e se perceba o dialogismo entre identidade e alteridade, entre o similar e o diferente, a educação intercultural propicia uma confrontação entre diferentes visões de mundo.[4]
A interculturalidade, nesse sentido, não se limita a perceber e tolerar as diferenças culturais, mas de construir espaços de encontro, possibilitando diálogo e troca entre povos e culturas distintas em nível de simetria. É uma forma de conceber o contato entre culturas distintas de maneira fluida e dialética, bem como contraditória e conflitiva.[1] Nesse sentido, entende-se que não há fronteiras rígidas entre culturas e pessoas de grupos sociais distintos, da mesma forma que não há cultura que se mantenha em estado puro ou estático, livre da influência de outras culturas.

Objetivos da educação intercultural[editar | editar código-fonte]

Em um de seus trabalhos publicado em 2019 sobre a temática, a linguista aplicada Edleise Mendes elenca alguns objetivos da educação intercultural voltada para atender as demandas da realidade da educação indígena no Brasil, levando em conta a diversidade linguístico-cultural brasileira no que se refere à presença desses povos originários em espaços educacionais institucionalizados:

  • incentivar comportamentos pautados pelo respeito às diferenças e à diversidade linguístico-cultural que permeia o ensino-aprendizagem;
  • propiciar interações marcadas pela cooperação e integração entre sujeitos de diferentes contextos socioculturais, de forma a criar um entrelugar de negociação entre diferentes significados e práticas culturais;
  • contribuir para o fim de quaisquer formas de preconceito, discriminação, e práticas ou atitudes que ofendem, menosprezam ou invalidam indivíduos e seus direitos humanos básicos, dentro e fora do espaço educacional.[5]

Considerando a educação enquanto arena de tensões sociopolíticas, ao se propor uma educação intercultural, Catherine Walsh[1] explica que é imprescindível reconhecer que existe uma hegemonia cultural e de poder que são impostas social e politicamente. Logo, ao invés de reforçar o apagamento e a homogeneização das diferenças socioculturais que coexistem nos espaços de interação social, uma educação intercultural busca formar sujeitos mais culturalmente sensíveis para atuar em contextos multiculturais e multilingues,[6] intervindo na realidade e nas contradições sociais.
A interculturalidade, portanto, não é algo que existe a priori, mas uma atitude, uma postura a ser construída e praticada em todos os espaços de convívio social, cultural e político, de forma que transcende as fronteiras da educação escolar, alcançando o âmbito de interação social como um todo.[6] Implementar uma educação intercultural, nessa perspectiva, significa alinhar discursos e ações no intuito de promover tanto práticas como políticas que visem a equidade entre indivíduos e justiça social.[7]
A Constituição Federal de 1988 passa a reconhecer os povos originários e valorizar sua pluralidade étnica, cultural e linguística. Com isso, a legislação nacional que rege as bases da educação indígena e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 asseguram o direito a uma educação que atenda as demandas específicas das comunidades indígenas, observando seu caráter multicultural e multilíngue e visando um tratamento diferenciado, não-homogeneizante.[5]

Educação Bi/Multilíngue Intercultural[editar | editar código-fonte]

Há diversos projetos de Educação Intercultural Bilíngue (EIB) na América Latina em função da forte presença e diversidade dos povos originários. Alguns exemplos de países que realizaram experiências de EIB são México, Equador, Peru, Brasil, Bolívia, Nicarágua, Guatemala, entre outros.[8]
De acordo com o censo do IBGE de 2010, o Brasil conta com 274 línguas indígenas faladas, 50 línguas de migração, além da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e do Português.[5] Isso representa um desafio enorme para o sistema educacional, tendo em vista que há inúmeras comunidades indígenas onde o Português não é a língua principal.

Alguns eixos principais do Ensino Intercultural Bilíngue consistem em valorizar os saberes indígenas, as narrativas orais e sabedoria dos anciãos, bem como priorizar a língua materna dos alunos como língua de instrução.[9][8] O Sistema de Educação Intercultural Bilíngue (SEIB) estabelece que, nas áreas de população indígena, a língua de instrução deve ser a língua indígena correspondente, sendo o Espanhol ensinado como segunda língua, a língua de relação intercultural.[10] Assim, as línguas indígenas devem ser progressivamente incorporadas aos currículos, de modo que ao menos uma língua ancestral esteja presente no ensino.
Para possibilitar esse diálogo intercultural na aprendizagem e comunicação, os professores devem receber uma formação integral em línguas indígenas e interculturalidade, bem como dominar a língua materna dos alunos (oral e escrita), saber ensinar a língua oficial como segunda língua, ter conhecimento tanto das cosmovisões e saberes indígenas quanto daqueles ditos "nacionais", de forma que possam atender aos interesses e demandas pedagógicas, sociais e culturais particulares.[10]
No Equador, por exemplo, existe uma maior autonomia em termos de hierarquia institucional da estrutura administrativa para a criação de políticas públicas que visem atender às necessidades dos povos indígenas.[8] No entanto, ainda falta muito para que a prática esteja alinhada com a teoria, pois o sistema educacional carece de projetos concretos e subsídios que possibilitem a implementação dessas propostas, uma formação intercultural bilíngue aos docentes, o real acesso dos alunos em situação socioeconômica desfavorecida à educação, bem como o desenvolvimento e distribuição de materiais didáticos específicos.[10] No que se refere aos materiais didáticos, por exemplo, os livros-texto fornecidos pelo governo estão integralmente em espanhol, e refletem os modos de vida e cultura ocidentais, próprios à população branca-mestiça de classe média-alta,[10] ou seja, não refletem as cosmovisões das comunidades indígenas.

Contexto norte global[editar | editar código-fonte]

Na Europa, a linguista francesa Claire Kramsch aponta que o termo intercultural surgiu num contexto onde o fluxo de migração era intenso e se viu a necessidade de trazer para a educação a proposta de desenvolver uma ‘competência intercultural’, visando à tolerância ao diferente/outro.[11]
Nesse sentido, a interculturalidade é compreendida como um aspecto da competência comunicativa, muito discutida por pesquisadores no âmbito do ensino de línguas. Alinhados a esta ótica, outros pesquisadores da área,[12] no documento intitulado “Developing the Intercultural Dimension in Language Teaching” (Desenvolvendo a dimensão intercultural no ensino de línguas), publicado pelo Conselho Europeu em 2002, pontuam que a competência intercultural possibilita um contato menos conflituoso entre crenças, valores e comportamentos divergentes entre culturas, pois conscientiza os sujeitos da importância de se ajustar, aceitar e compreender o outro.
A noção de competência intercultural se desdobra em cinco habilidades/saberes: conhecimentos (savoirs), atitudes para consigo e os demais (savoir être), habilidade de interpretar e relacionar (savoir comprendre), habilidade de descobrir e interagir (savoir apprendre/faire), e consciência cultural/política crítica (savoir s'engager).[12] Nessa perspectiva, os estudantes adquirem conhecimento de diferentes culturas do mundo, bem como fazem o exercício de relacionar suas culturas nativas às demais, avaliando e interpretando de forma crítica as comparações.[13]

Referências

  1. a b c d WALSH, Catherine. La educación Intercultural en la Educación. Peru: Ministerio de Educación, 2005.
  2. a b CANDAU, Vera Maria Ferrão. Diferenças culturais, interculturalidade e educação em direitos humanos. Educação & Sociedade [online]. 2012, v. 33, n. 118, pp. 235-250.
  3. WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. Visão Global, Joaçaba, v. 15, n. 1-2, p. 61-74, jan./dez. 2012.
  4. FLEURI, R. M. Interculturalidade, identidade e decolonialidade: ­desafios políticos e educacionais. Série-Estudos - Periódico Do Programa De Pós-Graduação Em Educação Da UCDB, (37), p. 89–106, 2014.
  5. a b c MENDES, Edleise. Educação escolar indígena no Brasil: multilinguismo e interculturalidade em foco. Ciência e Cultura. São Paulo, v. 71, n. 4, p. 43-49, Oct. 2019.
  6. a b MENDES, Edleise. Educação Linguística Intercultural. In: LANDULFO, Cristiane; MATOS, Doris (Orgs.). Suleando conceitos e linguagens: decolonialidades e epistemologias outras. Campinas, SP: Pontes Editores, 2022.
  7. PARAQUETT, M. Thinking (and doing) otherwise com a língua dos hermanos: O Espanhol na pesquisa e nas políticas linguísticas do Brasil. Letras & Letras, [S. l.], v. 35, n. especial, p. 109–136, 2019.
  8. a b c FAJARDO SALINAS, Delia María. Educación intercultural bilingüe en Latinoamérica: un breve estado de la cuestión. LiminaR. Estudios Sociales y Humanísticos, v. 9, n. 2, p. 15-29, 2011.
  9. NOVO, Carmen Martínez. Conocimiento occidental y saberes indígenas en la educación intercultural bilingüe en el Ecuador. In: Alteridad. Revista de Educación, v. 11, n. 2, jul-dez, pp. 206-220, 2016.
  10. a b c d CRUZ, Marta HRodríguez. Construir la interculturalidad. Políticas educativas, diversidad cultural y desigualdad en el Ecuador. In: Íconos Revista de Ciencias Sociales. n. 60, Quito, Janeiro 2018, pp. 217-236 2018.
  11. KRAMSCH, Claire. Culture in foreign language teaching. Iranian Journal of Language Teaching Research, v.1, n.1, p. 57-78, 2013.
  12. a b BYRAM, M; GRIBKOVA, B; STARKEY, H. Developing the Intercultural Dimension in Language Teaching: a practical introduction for teachers. Language Policy Division, Directorate of School, Out-of-School and Higher Education, Council of Europe: Strasbourg, France. 2002.
  13. CHLOPEK, Zofia. The Intercultural Approach to EFL (English as a Foreign Language) Teaching and Learning. English Teaching Forum, v.46, n.4, p.10-19, 2008.