O Corcunda do Rei da China

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O corcunda do rei da China[1] é um conto de humor negro de As Mil e uma Noites sobre as tentativas sucessivas de um alfaiate, um médico judeu, o despenseiro do sultão e um corretor cristão de se livrarem do cadáver de um corcunda bufão do rei da China. A história guarda certa semelhança com o filme de humor negro de Alfred Hitchcock O Terceiro Tiro.[2]

Na história, a China é um país islâmico, mostrando que em ‘’As Mil e Uma Noites’’ a exatidão geográfica é menos relevante do que a história em si. O rei também é chamado de “sultão da China”. Um dos tradutores da obra para o inglês, Richard Burton, observa que, embora em algumas versões a história transcorra em outros locais, ele prefere a China por ser mais distante e tornar as improbabilidades da história ainda mais notáveis.[3]

Aqui temos uma estrutura complexa de encadeamento de histórias. No primeiro nível, temos a história do corcunda morto. No segundo nível, os quatro suspeitos do assassinato – o alfaiate, o médico judeu, o despenseiro e o corretor cristão – narram suas histórias (segundo nível), todas envolvendo protagonistas com algum defeito (três mutilados e um manco), que contam como chegaram àquele estado (terceiro nível). Ainda no terceiro nível, o barbeiro, personagem da história do alfaiate, conta um episódio de sua própria vida e as histórias de cada um de seus seis irmãos, todos defeituosos: um caolho, um paraplégico, um corcunda, um cego, um de orelhas cortadas e um de lábios cortados.

O corcunda do rei da China[editar | editar código-fonte]

O alfaiate convida o corcunda para vir jantar em sua casa mas, ao forçá-lo a comer um pedaço de peixe, o corcunda se engasga com a espinha e morre. O alfaiate tenta se livrar do corpo abandonando-o no consultório do médico judeu, que, ao descer a escada no escuro, tropeça no corcunda, que rola escada abaixo, levando o judeu a achar que foi ele quem o matou. O judeu lança o corpo do seu terraço para a casa do vizinho despenseiro, que, julgando que o corcunda é um ladrão, golpeia-o com violência, e acaba acreditando que o matou. O despenseiro abandona o corpo num beco, onde um cristão bêbedo lhe dá uma surra e também acredita que o matou. O corpo do corcunda, bem como o alfaiate, o judeu, o despenseiro e o cristão, são conduzidos até o rei que se assombra com a história, ordena que seja registrada nos anais, e pergunta se “porventura vocês já ouviram algo mais assombroso do que o caso sucedido com esse corcunda?”, levando cada um dos quatro envolvidos a contar uma história. Se ao menos uma delas satisfizer ao rei, eles serão poupados da pena de morte.

O jovem mercador e sua amada[4][editar | editar código-fonte]

História, contada pelo cristão, de um homem que dilapida todo seu dinheiro com uma mulher bonita até que a pobreza o força a roubar, levando à amputação de sua mão direita.

O jovem de Bagdá e a criada de madame Zubayda[5][editar | editar código-fonte]

História, contada pelo despenseiro, de um homem que não lava a mão depois de comer um ensopado temperado com cominho, na noite de seu casamento com uma das servidoras de uma das esposas do califa. Para se casar, teve de entrar clandestinamente no palácio do califa, arriscando a vida. Enfurecida com o fedor, a noiva lhe amputa os polegares de mãos e pés com uma navalha.

O jovem de Mossul e sua namorada ciumenta[6][editar | editar código-fonte]

História, contada pelo médico judeu, de um homem que, em viagem a Damasco, conhece uma mulher intrigante com quem dorme duas noites. No terceiro encontro, ela traz consigo outra moça ainda mais bonita, permitindo que ele passe a noite com essa moça. De manhã o homem percebe que a primeira mulher decapitou a outra, por ciúmes. Enterra-a dentro da casa, e vai para o Cairo. Mais adiante, é falsamente acusado do roubo do colar da moça morta e tem sua mão decepada. No final, revela-se que as irmãs eram filhas do governador de Damasco, que indeniza a vítima da amputação pela injustiça.

O jovem manco e o barbeiro de Bagdá[7][editar | editar código-fonte]

História bem-humorada, contada pelo alfaiate, de um homem cujo encontro com a filha de um juiz, por quem se apaixonou, é inviabilizado pela ação do barbeiro que, em vez de se limitar à função de cortar seu cabelo, põe-se a tagarelar e a consultar o horóscopo, e não desgruda mais dele, a ponto de estragar seu encontro amoroso e fazer com que quebrasse a perna, tornando-se manco, e tivesse de abandonar a cidade de Bagdá.

O barbeiro de Bagdá e seus irmãos[8][editar | editar código-fonte]

Nesta história dentro da anterior, o próprio barbeiro, defendendo-se das acusações do alfaiate, narra um episódio de sua vida, em que por engano se juntou a um grupo de dez bandidos e quase foi decapitado junto com eles. Declara que, dentre todos os irmãos, ele é o menos tagarela e indiscreto, e o mais ajuizado. A seguir conta as peripécias de seus seis irmãos, figuras tragicômicas, enganadas por pessoas cruéis que nunca são punidas.[9] As histórias dos irmãos do barbeiro têm por fonte uma obra de autor anônimo do século XIII ou XIV, “Histórias espantosas e crônicas prodigiosas”.[10]

O primeiro irmão do barbeiro[11][editar | editar código-fonte]

O primeiro irmão do barbeiro, o corcunda, apaixona-se tão fortemente pela mulher do vizinho que passa a costurar de graça para o casal, perdendo assim seu ganha-pão e caindo na miséria. Além disso, é vítima de armadilhas, como acionar um moinho como se ele fosse um burro e ser flagrado em plena tentativa de adultério com a vizinha.

O segundo irmão do barbeiro[12][editar | editar código-fonte]

O segundo irmão do barbeiro, o paraplégico, deixa-se atrair por uma velha para uma “bela casa com jardim [...] e um rosto formoso, semelhante ao plenilúnio, para você abraçar”, mas lá acaba sofrendo as piores humilhações, como ser espancado, ter os bigodes arrancados e a barba cortada.

O terceiro irmão do barbeiro[13][editar | editar código-fonte]

O terceiro irmão do barbeiro, o cego, bate à porta de uma grande casa, pedindo esmola, mas, além de sair de mãos abanando, é seguido pelo dono da casa, que tem más intenções.

O quarto irmão do barbeiro[14][editar | editar código-fonte]

O quarto irmão do barbeiro, um azarado, quando trabalhava como açougueiro em Bagdá, foi enganado por um ancião, que durante meses pagou suas compras com moedas falsas. Quando foi reclamar, o ancião o acusou de vender carne humana. Na confusão, o irmão perdeu um olho. Tendo que mudar de cidade, tornou-se sapateiro. Um dia ouviu barulho de cascos e relinchos de cavalos. Era o sultão indo caçar, que tinha aversão por caolhos e ordenou que o espancassem. Em outra ocasião, ao ouvir novamente relinchos de cavalos, procurou se abrigar numa casa e foi acusado de ser um ladrão arrombador.

O quinto irmão do barbeiro[15][editar | editar código-fonte]

O quinto irmão do barbeiro, o de orelhas cortadas, era um pobretão que esmolava, até receber sua parte da herança do pai. Aplica o dinheiro em garrafas de vidro e resolve vendê-las, imaginando o grande lucro que terá ao aplicar e reaplicar o resultado das vendas, até que as garrafas quebram e o sonho se desfaz, numa história análoga à fábula de La Fontaine “A leiteira e o pote de leite”.[16] A seguir, é atraído por uma velha a uma mansão onde roubam seu dinheiro e tentam matá-lo.

O sexto irmão do barbeiro[17][editar | editar código-fonte]

O sexto irmão do barbeiro, o de lábios cortados, empobreceu após ter sido rico. Com fome, é admitido numa casa onde um homem o convida para um banquete, porém imaginário, o homem fazendo gestos de comer e oferecer os mais requintados pratos, mas eles não existem, tudo não passando de encenação, uma tortura para o irmão esfaimado.

Conclusão[editar | editar código-fonte]

No final, o rei da China, tendo se divertido com a história do barbeiro, convoca-o à corte. Lá o barbeiro descobre que o corcunda ainda está vivo e remove a espinha entalada na sua garganta.

Referências

  1. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do pequeno corcunda”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História do corcunda, do alfaiate, do corretor cristão, do intendente e do médico judeu".
  2. “Mesmo 'O corcunda do rei da China ', que começa com o cadáver de um artista corcunda sendo passado ansiosamente de uma pessoa atormentada pela culpa para outra, é basicamente ‘’O Terceiro Tiro’’, um milênio antes de Hitchcock filmá-lo.” Nicholas Lezard. «The one in a thousand». Consultado em 15 de janeiro de 2023 
  3. Richard Burton, Arabian Nights, primeiro volume, nota de rodapé #496.
  4. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história contada pelo mercador cristão”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História do corretor cristão".
  5. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história contada pelo fornecedor do sultão de Casgar”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História do intendente do rei da China".
  6. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história contada pelo médico judeu”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "Narrativa do médico judeu".
  7. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história contada pelo alfaiate”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "Narrativa do alfaiate".
  8. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História do barbeiro".
  9. Andrew Lang. «The Arabian Nights - The First Brother, the Hunchbacked Tailor - Summary». Consultado em 16 de janeiro de 2022 
  10. ’’Livro das Mil e uma Noites’’, volume 1 - ramo sírio, Editora Globo, tradução do árabe por Mamede Mustafa Jarouche, p. 333, nota. 250.
  11. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do primeiro irmão do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História de Bacbuck, o primeiro irmão do barbeiro".
  12. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do segundo irmão do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História de Al-Haddar, o segundo irmão do barbeiro".
  13. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do terceiro irmão do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História de Bacbac, o terceiro irmão do barbeiro".
  14. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do quarto irmão do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História de Al-Kuz, o quarto irmão do barbeiro".
  15. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do quinto irmão do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História de Al-Hachar, o quinto irmão do barbeiro".
  16. Possível inspiração do ditado “Não adianta chorar pelo leite derramado”.
  17. Na tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Naquela de Alberto Diniz a partir do texto francês de Antoine Galland, “A história do sexto irmão do barbeiro”. Na edição ilustrada de capa dura da Editora Saraiva de 1961, "História de Chakalik, o sexto irmão do barbeiro".