O Vaqueano

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O Vaqueano[1] é um romance de Apolinário Porto-Alegre, que foi publicado em 1872, portanto, dois anos depois que José de Alencar lançara O Gaúcho.[2]

“Apolinário Porto-Alegre, inspirado no modelo (de O Gaúcho), publicou O Vaqueano; mas acrescentou-lhe a observação direta do meio, que faltava por completo ao escritor cearense. Ele é, portanto, o legítimo fundador do regionalismo literário sul-rio-grandense, que nesse momento deixa de ser mero sentimento coletivo e se traduz como um programa de ação.”[3] “Alencar publicou o romance regionalista sobre a província do Rio Grande do Sul sem nunca aqui ter estado; apenas com informações orais sobre a região. Dessa forma, o texto nem sempre corresponde à realidade da pampa, chegando mesmo a fornecer uma visão deturpada do gaúcho”.[4]

Vaqueano é aquele que, conhecendo bem os caminhos e atalhos de uma região, serve de guia a quem precisa percorrê-los. [5] Neste caso, o vaqueano é José de Avençal, que se debate entre a necessidade de uma vingança e a dúvida em executá-la, posto que o provável assassino de sua família é o pai de Rosita, a mulher que ama. [6] [7]

Enredo[editar | editar código-fonte]

O romance inicia com uma descrição de José de Avençal:

"Era uma natureza admirável, não tanto pelas amplas manifestações dos músculos de ferro, como pela perícia e inteligência com que guiava os exércitos da República, e a grandeza e bondade do caráter. Também jamais houvera rio-grandense que, como ele, conhecesse a Província. Não lhe escapava uma jeira de terra, ainda mesmo perdida nos ínvios sertões ou em banhados de largo perímetro. Tinha a memória fiel até para as nugas locais. Era uma verdadeira vocação. Seu calendário de nomes abraçava do capão sumido na campina à restinga do mato ou arroio de exíguos cabedais. Constituía de per si o mais exato arquivo topográfico, um mapa vivo e pitoresco. Sempre sorria, quando os companheiros, ante a floresta, em que o taquaruçu crescia úmido, atado às árvores gigantes por fortes cipós e entretecido de finas e mimosas enrediças, exclamavam: - É impossível! Quando paravam desanimados na presença dos alcantis da cordilheira ou das barrancos de caudaloso ribeirão, ainda repetiam a frase de desalento. Sorria. E o sorriso que lhe rugava o lábio era a craveira de sua grandeza e superioridade." [8]

Quando criança, a família de Avençal foi dizimada por traição e o menino foi salvo pelos escravos, sendo criado e educado por um fidalgo português. Decidido a vingar-se, ele descobriu que José Capinchos, pai de sua amada Rosita, fora o responsável pela morte de sua família. Diante dos fatos consumados, abandonou todos os bens e as propriedades e saiu a vagar pelo mundo, quando conheceu todos os capões, todos os banhados, todos os riachos, que lhe concederam conhecimento sem igual do território gaúcho.

Buscando melhor qualificar o gaúcho, que fora delineado por Alencar, Apolinário Porto Alegre destaca, por exemplo, a falta de apego ao dinheiro e às coisas materiais, características de Avençal e seu amigo Moisés, que também não demonstram vaidade diante de posições de mando e poder.

O pano de fundo da narrativa é a Revolução Farroupilha, situando-se os eventos do romance entre abril de 1838 e novembro de 1839, havendo como tarefa posta ao vaqueano conduzir parte das tropas do exército sulino até Santa Catarina. [9]

Os dramas pessoais de Avençal vão se desenrolando conforme prossegue a viagem. [10]

Na narrativa,não parece existir uma forte inclinação para os ideais defendidos pelos chamados farrapos, ainda assim Avençal junta-se às tropas farroupilhas, de modo que são inseridas personagens históricas como Bento Gonçalves, David Canabarro, Giuseppe Garibaldi, aparecendo em posição secundária. Ao final, o vaqueano, que vinha sendo perseguido pelo filho de José Capinchos, sacrifica a sua vida em defesa do Forte de Laguna. [11] [12]

Relevância histórico-artística da obra[editar | editar código-fonte]

A relevância do romance de Apolinário Porto Alegre reside no fato que inaugurou uma temática na literatura gaúcha e fixou um modelo, o monarca das coxilhas, que ganharia o seu apogeu com Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto. Trata-se, pois, de uma matriz literária sob a qual se assentaram as produções em prosa e verso nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX. [13] [14] [15] [16] [17]

Como membro da Sociedade Partenon Literário, também responsável pelo incremento da temática regionalista: os hábitos rurais, as paisagens campeiras, a linguagem peculiar no Rio Grande do Sul, Apolinário Porto Alegre viu sancionado o seu projeto de ressaltar o tipo sul-riograndense. [18] [19] A transposição do gaúcho pária para a literatura, nobilitando-o, atribuindo-lhe caracteres de ser mítico, “o monarca das coxilhas”, seria, neste sentido, de grande valia para as oligarquias rurais, que usariam o peão nos tempos de paz para as duras lides do campo e levariam-no para a guerra, como soldado, sem o pagamento do respectivo soldo. [20] [21]

O modelo identitário, mítico do monarca das coxilhas, ainda que tenha passado por uma releitura pelo chamado romance de 30, nas obras de Aureliano de Figueiredo Pinto, Cyro Martins, Pedro Wayne, ainda encontra reflexos, por exemplo, hoje, na música popular gaúcha [22] e têm sido explorados pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). [23]

O romance serve também como documento para, do ponto de vista da História, pesquisar as formas de representação da Revolução Farroupilha através da literatura, entre aqueles que viveram o século XIX e os anos posteriores àquele acontecimento, [24] assim como oferece material para reconhecimento sobre a situação escravista na província mais meridional do Brasil. [25]

Em homenagem a Apolinário Porto Alegre e à sua obra, a Prefeitura Municipal de Rio Grande instituiu um concurso, em 2016, que, anualmente, premia cronistas e contistas e, entre os troféus, está “O Vaqueano”, alusão ao romance e que é entregue ao primeiro colocado.[26]

Referências

  1. Glória, Rafael (9 de novembro de 2013). «Redescobrindo o Partenon Literário». Jornal do Comércio. Consultado em 11 de fevereiro de 2019. Cópia arquivada em 11 de fevereiro de 2019 
  2. Romano, María Laura. «La voz (del) gaúcho. Paz y guerra en el nacimiento de la gauchesca brasileña» (PDF). Facultad de Filosofia y Letras, UBA. IV Congreso Internacional de Letras (em espanhol). Consultado em 11 de fevereiro de 2019. Cópia arquivada (PDF) em 11 de fevereiro de 2019 
  3. Chaves, Flavio Loureiro (1994). Matéria e Invenção: Ensaios de Literatura. Porto Alegre: EdUFRGS. 104 páginas. ISBN 9788570253163 
  4. Bernardi, Francisco (1999). As bases da Literatura Rio-Grandense: História, autores e textos. Porto Alegre: AGE. 144 páginas. ISBN 9788585627232 
  5. Vaqueano.
  6. GOMES, Carla Renata Antunes de Souza. De Rio-grandense a Gaúcho: O Triunfo do Avesso. Um processo de representação regional na literatura do século XIX (1847-1877). 2006, 356p. Dissertação. (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2006.
  7. CAMPOS, Antonio Evaristo Zanchin. De andarilho a herói dos pampas: História e Literatura na criação do gaúcho herói. 2008, 135 p. Dissertação. ( Mestrado em Letras e Cultura Regional). Universidade de Caxias do Sul.
  8. PORTO ALEGRE, Apolinário. O Vaqueano.
  9. CLIC PORTELA. 20 de setembro: O que é comemorado pelos Gaúchos.
  10. MOREIRA, Maria Eunice. Uma literatura de guerra. Letras de Hoje.
  11. LAZZARI, Alexandre. Raça, escravidão e literatura nacional na Revista do Partenon Literário (Porto Alegre, 1869-1879). 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.
  12. KIELING, Camila Garcia. História, Jornalismo, Literatura. Narrativas sobre a Tomada de Laguna (1839). Miscelânea, Assis, v. 14, p. 317-334, jul. – dez. 2013. Disponível em http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/RevistaMiscelanea/artigo-18---historia-jornalismo-literatura---camila-garcia-kieling.pdf 11 de fevereiro de 2019.
  13. ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
  14. CHAVES, Flávio Loureiro. “Um caso ideológico: O centauro dos pampas”> IN: CHAVES, Flávio Loureiro. História e Literatura. 3.ed. Porto Alegre: EdUFRGS, 1999.
  15. GONZAGA, Sergius. “As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições da literatura”. IN: FREITAS, Decio et. all (org.). RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.
  16. ACADEMIA RIO-GRANDENSE DE LETRAS. Quadro Acadêmico: Apolinário Porto Alegre.
  17. ARENDT, João Claudio. O imaginário social em João Simões Lopes Neto. Metis. História & Cultura, v. 2, n. 4, 2003.
  18. CESAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul (1737-1902). Porto Alegre: Globo, 1971.
  19. DANIEL, Carine. A mitificação e a desmitificação do gaúcho em O Vaqueano e Porteira Fechada, respectivamente. 2007, 95 p. Monografia. (Curso de Letras). Centro Universitário La Salle. 2007.
  20. HENKIN, Elisa. "Apolinário Porto Alegre e o regionalismo gaúcho". In: PORTO ALEGRE, Apolinário. O vaqueano. Porto Alegre: Movimento, 1987.
  21. JORNAL DO MERCADO. Partenon Literário.
  22. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Lanças erguidas, espadas no ar: Como a música regionalista da Califórnia da Canção Nativa escreve a História do Rio Grande do Sul. 2009, 69 p. Monografia. Departamento de História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2009.
  23. LEAL, Tiago Pereira. Continuidade versus ruptura: a tipificação do gaúcho pelo MTG. s/d, p. 31. Monografia. Curso de Ensino de Sociologia no Ensino Médio. Universidade Federal de Rio Grande.
  24. SOARES, Fabricio Antonio Soares. Como se escreveu a Revolução Farroupilha no século XIX. XXVIII Simpósio Nacional de História.
  25. XAVIER, Regina Celia Lima. Uma história que se conta: o papel dos africanos e seus descendentes na formação do Rio Grande do Sul
  26. PREFEITURA MUNICIPAL DE RIO GRANDE. Prêmio Apolinário Porto Alegre

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

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