Culpabilização da vítima
Culpabilização da vítima (em inglês, victim blaming) é o ato de desvalorizar uma vítima de crime, considerando-a responsável pelo acontecido.[1] Além disso, também pode ser definida como o ato de justificar uma desigualdade encontrando defeitos em suas vítimas.[2] O termo foi cunhado pelo psicólogo William Ryan em seu livro Blaming the Victim, de 1971,[3] que abordou a questão das minorias étnicas do Estados Unidos.[4]
O estudo da vitimologia procura mitigar a percepção das vítimas como responsáveis.[5] Há uma maior tendência em culpar as vítimas de estupro do que as vítimas de assalto nos casos em que vítimas e agressores conhecem um ao outro.[6]
História
[editar | editar código-fonte]O termo foi inicialmente apresentado no livro Blaming the Victim de Ryan como uma construção social relacionada à culpa dada pela classe média norte-americana aos pobres por sua própria pobreza. O termo tem sido usado notadamente em vítimas de estupro[7]
Embora Ryan popularizou a expressão, o fenômeno de culpar a vítima está bem estabelecida na psicologia humana e na História; por exemplo, há uma abundância de exemplos no Antigo Testamento em que as tragédias e catástrofes são justificados e culpam as vítimas por suas faltas como pecadores.[8]
Em 1947 Theodor W. Adorno definiu o que viria a ser chamado de "culpar a vítima", como "uma das características mais sinistras do caráter fascista".[9] Pouco tempo depois Adorno e outros três professores da Universidade da Califórnia em Berkeley formularam a influente e altamente debatida Escala F, ou escala de fascismo (F Scale),[10] publicada no A personalidade autoritária (1950),[11] que incluía, entre os traços fascista da escala "desprezo por tudo que é discriminado ou fraco."[12] Uma expressão típica de culpabilização da vítima é o "pedir por isso", por exemplo, "Ela estava pedindo por isso", dito de uma vítima de violência ou agressão sexual.[13] Este pensamento foi mais tarde aperfeiçoado e divulgado pelo canadense Bob Altemeyer em 1981.[14]
Opiniões contrárias
[editar | editar código-fonte]O criminologista Menachem Amir, aluno de Marvin Wolfgang, concluiu entre 1960 e 1968 uma análise polêmica sobre o crime de estupro listando fatores que colaborariam para o ato criminoso, aplicando então o conceito de "precipitação pela vítima". A análise identificou situações em que a vítima inicialmente consente no ato sexual se arrependendo em seguida ou ainda, não sendo capaz de resistir às investidas do agressor.[15] Assim com Wolfgang, o consumo de álcool pela vítima era um dos principais fatores, potencializados pelo consumo também do agressor. Outros fatores seriam o comportamento sedutor da vítima, uso de roupas provocantes, linguajar insidioso, ter "má" reputação e estar no local e hora errados. Além desses fatores, algumas vítimas teriam a necessidade inconsciente de serem controladas por sexo violento.[16]
O estudo recebeu fortes críticas por parte de acadêmicos, pesquisadores, feministas, defensores dos direitos das mulheres e vítimas, além de ativistas.[16][17]
Incidentes
[editar | editar código-fonte]No ano de 2011, uma garota de 11 anos de idade que sofreu estupro coletivo em Cleveland, no Texas, foi acusada pela defesa dos acusados de atrair os homens que a violentaram.[18] O jornal New York Times publicou um artigo relatando de forma acrítica a maneira como muitos da comunidade culparam a vítima, o jornal pediu desculpas mais tarde.[18][19]
Em um caso que atraiu cobertura mundial, quando uma jovem foi estuprada e morta na Índia, em dezembro de 2012, alguns funcionários do governo indiano e líderes políticos culparam a vítima por sua roupa e por estar fora de casa tarde da noite.[20]
Estatísticas
[editar | editar código-fonte]Brasil
[editar | editar código-fonte]Em 27 de março de 2014, o órgão brasileiro Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou uma pesquisa que mostrou 42.7% de concordantes com a afirmação "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" contra 24% de discordantes[21] gerando manifestações públicas e nas redes sociais. Pouco depois, em 4 de abril de 2014, o órgão admitiu que o resultado foi um erro causado pela troca dos gráficos relativos aos percentuais das respostas às frases "Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar" e "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas",[22] a versão corrigida trouxe 13,2% de concordantes e 58,4% de discordantes da afirmação "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas".[21]
Em uma pesquisa do instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), um em cada três brasileiros acredita que nos casos de estupro, a culpa é da mulher, segundo o levantamento, 33,3% da população brasileira acredita que a vítima é culpada.[23]
Segundo pesquisa divulgada pelo IPEA em 2014, a maioria dos brasileiros acredita que o estupro é culpa da mulher.[24]
Referências
- ↑ The Canadiana Resource Centre for Victims of Crime Victim blaming, Agosto de 2009
- ↑ Paul Downes; Ann Louise Gilligan (2007). Beyond Educational Disadvantage. Institute of Public Administration. p. 49. ISBN 978-1-904541-57-8.
- ↑ Todd F. Heatherton (2003).The Social Psychology of Stigma. Guilford Press. p. 130. ISBN 978-1-57230-942-5.
- ↑ José G. V. Taborda; Miguel Chalub; Elias Abdala-Filho (2012). Psiquiatria Forense 2ed. Artmed. p. 102. ISBN 978-85-363-2703-7.
- ↑ Fox, K. A.; Cook, C. L. (2011). «Is Knowledge Power? The Effects of a Victimology Course on Victim Blaming». Journal of Interpersonal Violence. doi:10.1177/0886260511403752
- ↑ Bieneck, S.; Krahe, B. (2010). «Blaming the Victim and Exonerating the Perpetrator in Cases of Rape and Robbery: Is There a Double Standard?». Journal of Interpersonal Violence. 26 (9). p. 1785–97. PMID 20587449. doi:10.1177/0886260510372945
- ↑ Brent E. Turvey (2013). Forensic Victimology: Examining Violent Crime Victims in Investigative and Legal Contexts. Academic Press. p. 209. ISBN 978-0-12-407920-5.
- ↑ Daniel N. Robinson (2009). Praise and Blame: Moral Realism and Its Applications. Princeton University Press. p. 141. ISBN 1-4008-2531-8.
- ↑ Adorno, TW (1947) Wagner, Nietzsche and Hitler in Kenyon Review Vol.ix (1), p. 158
- ↑ Cláudio Torres; Elaine Rabelo Neiva (2011). Psicologia Social. Artmed. p. 49. ISBN 978-85-363-2652-8.
- ↑ Nancy McWilliams (2014). Entendendo a Estrutura da Personalidade no Processo Clínico,2.ed.. p. 138. ISBN 978-85-65852-98-2.
- ↑ Espen Hammer (2006). Adorno and the Political. Routledge. p. 63. ISBN 978-0-415-28913-9.
- ↑ Nicky Ali Jackson (2007). Encyclopedia of Domestic Violence. Taylor & Francis. p. 715. ISBN 978-0-203-94221-5.
- ↑ Altemeyer, Bob (1981). Right-Wing Authoritarianism. Winnipeg: University of Manitoba Press. ISBN 0-88755-124-6
- ↑ Bonnie S. Fisher; Steven P. Lab (2010). Encyclopedia of Victimology and Crime Prevention. SAGE Publications. p. 732. ISBN 978-1-4522-6637-4.
- ↑ a b Homicídios no Brasil. FGV Editora. 2007. pp. 107–109. ISBN 978-85-225-0622-4.
- ↑ Ann Wolbert Burgess; Professor of Psychiatric Nursing William F Connell School of Nursing Boston College Ann Wolbert Burgess; Cheryl Regehr; Professor Faculty of Social Work and Faculty of Law Cheryl Regehr, PH.D., Albert R. Roberts, Professor of Social Work and Criminal Justice Albert R Roberts, PH.D. (2011). Victimology: Theories and Applications. Jones & Bartlett Publishers. p. 40. ISBN 978-1-4496-4371-3.
- ↑ a b Adams, Sam (29 de novembro de 2012). «Cleveland, Texas rape case: Defense attorney calls pre-teen victim a spider, but that's his job». Slate. Consultado em 27 de dezembro de 2014
- ↑ Mediabistro.com, ed. (10 de março de 2011). «NY Times Defends Victim Blaming Coverage of Child Rape Case». Consultado em 27 de dezembro de 2014
- ↑ «Amid rape fiasco, India's leaders keep up insensitive remarks». Washington Post. Janeiro de 2013. Consultado em 27 de dezembro de 2014
- ↑ a b «Tolerância social à violência contra as mulheres (versão anterior a de 04/04/2014)» (PDF). Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS / IPEA). Consultado em 19 de junho de 2016
- ↑ «Errata da pesquisa "Tolerância social à violência contra as mulheres"». Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS /IPEA). Consultado em 27 de dezembro de 2014
- ↑ Will Soares; Cíntia Acayaba. «Um em cada 3 brasileiros culpa mulher em casos de estupro, diz Datafolha». G1. Consultado em 21 de setembro de 2016
- ↑ Ciscati, Rafael (27 de março de 2014). «A culpa é delas. É o que pensam os brasileiros sobre a violência contra a mulher». Época. Consultado em 27 de junho de 2017