Usuário(a):Tetraktys/O mito do consenso
Esta página é um ensaio. Ensaios são conselhos ou opiniões de um ou mais contribuidores da Wikipédia. Ensaios não são políticas, recomendações e nem informativos. Alguns ensaios representam práticas já bem difundidas na comunidade; outros apenas representam pontos de vista minoritários. |
O consenso é um dos conceitos mais acarinhados na Wikipédia. Mas a despeito de ser também um dos mais controversos, para não dizermos utópicos e ilusórios, sobre ele se estabeleceu um dos fundamentos do projeto Wiki: a presunção de que as decisões sejam tomadas em um clima de diálogo pacífico, bem intencionado e iluminado pela sabedoria e pela fraternidade, onde por fim se chega a um acordo coletivo sobre o ponto em discussão. Assim se criaram muitas das políticas internas que hoje são oficiais. Na verdade, ao contrário do que apregoa a página oficial, o consenso raramente é obtido sem muito debate anterior, e esses debates raramente escapam de decair em alguns momentos para a vulgaridade, com injúrias pessoais e golpes baixos proferidos de um lado e de outro da arena. A verdade crua é que o consenso se obtém com muito conflito. Mas este não é o problema principal.
O grande problema é que parte deste conflito deriva diretamente da dificuldade de se definir quando o tão badalado consenso foi conseguido. Muitas vezes as discussões são tão longas e cansativas que o assunto morre na casca, e o acordo é frustrado. Mas quando a discussão chega aos "finalmentes", pode ser difícil distinguir o partido vencedor quando a maioria é pequena e quando a minoria tem opiniões bem embasadas. De acordo com bons dicionários (Houaiss, Merriam-Webster), consenso é uma opinião generalizada, é a maioria esmagadora, e se aproxima muito da unanimidade, se não for mesmo o seu sinônimo. Até aí tudo em paz. Mas se vamos aplicar o significado dicionarizado do consenso ao ambiente Wiki veremos de imediato que opiniões largamente generalizadas são muito raras e as unanimidades, quase inexistentes, mesmo em se tratando de aspectos fundamentais para a elaboração de uma enciclopédia séria. Ainda não aceitamos inteiramente sequer, por exemplo, que os artigos devem ser inteiramente referenciados, conforme obriga nossa política de verificabilidade, o que tem dado margem a uma enorme quantidade de ácidas discussões, e apesar de estar declarado nos Cinco Pilares, a regra maior deste projeto, que a Wikipédia não admite pesquisa inédita. Incoerências doutrinais como esta são muitas, e precisam de solução urgente.
Contra este confuso panorama conceitual, o consenso - entendido como uma maioria esmagadora - muito raramente poderia ser conseguido e se torna, por isso mesmo, inadequado como meio eficaz de tomada de decisão. Aliás, é curioso constatar que a própria Wikipédia reconhece que o consenso não funciona sempre e aprova a votação para os casos difíceis. Ora, as tentativas de consenso via de regra não podem ser qualificadas senão como difíceis, basta verificar a seção de Propostas na Esplanada para constatar que a maioria das discussões acabam abandonadas e, o pior, sem conduzir a uma votação, que seria a continuidade natural do processo. E é ainda mais curioso que repetidamente se fale em proporções matemáticas durante o balanço das tentativas de consenso, o que reforça a impressão de que o estabelecimento oficial de uma proporção definida é uma necessidade prática legítima e urgente.
O que fazer, então, com as decisões que precisam ser tomadas mas não temos nem uma unanimidade e nem perto de uma maioria ampla? As opiniões aqui dentro variam muito sobre isso, e não se chegou a um... "consenso". Para muitos editores, 55% a favor, por exemplo, não representam um consenso, mas sim evidenciam que a comunidade está muito dividida. Para eles um consenso exigiria uma margem bem maior para ser reconhecido e significar uma vontade definida da comunidade. O problema é exatamente quantificar qual seria essa margem: 70%? 75%? 80, 90%? Mesmo sem nunca ter sido feita essa escolha crucial, muitos consensos foram oficializados e, como foi dito, estabeleceram muitas das políticas atuais da Wikipédia, mas são altamente questionáveis porque jamais foi definida qual proporção é necessária para o consenso ser reconhecido de forma indubitável. Porém, a proporção de 2/3 é frequentemente usada em votações, e poderia ser empregada nas decisões de consenso também, já que uma certa prática a consagrou.
O conceito de consenso, como apresentado na Wikipédia (vide nota: [1]), é mal articulado, pois se explica a sua aplicação mas não se define o que ele é senão de forma subjetiva, nem se estabelece a proporção de gente necessária para obtê-lo. Não admira que muitas das discussões envolvendo tentativas de consenso sejam tão terrivelmente divagantes, insubstanciais, infrutíferas e mesquinhas, pois todos lutam para prevalecer disputando sobre a mesma política, que é, na verdade, inconsistente. Como, neste contexto, nenhum argumento lógico pode sequer funcionar, que dirá prevalecer, infelizmente os ânimos rapidamente se acerbam e recorre-se à violência, resultando em conflagrações. O resultado é sempre duvidoso, nebuloso, a não ser nos casos de ampla maioria, pois se recusa a quantificação matemática das opiniões.
Como se não bastasse, na página que explica como são tomadas as decisões na Wikipédia é apresentada uma série de argumentos contra as votações que ou são claramente tendenciosos, ou são derivados do comportamento irregular dos editores e não do sistema em si, ou poderiam ser aplicados perfeitamente também ao consenso, tornando os argumentos vazios porque inespecíficos. Alguns exemplos:
- Votações encorajam a falsa dicotomia. Como se os consensos fossem imunes à polarização das opiniões. Ao contrário, polarizações radicais são frequentes.
- Votações encorajam o pensamento de grupo. Ver uma lista de participantes em uma votação encoraja as pessoas a adicionarem seus próprios nomes. É fácil somente adicionar seu nome, especialmente se um lado está claramente "ganhando". Isso é simplesmente absurdo. Se alguns votantes são vacas de presépio, o que impedirá que eles se comportem da mesma maneira num consenso?
- Votações também não são justas. Um dos desafios primordiais ao conduzir votações é decidir quais votos são contabilizados. Obviamente, não é justo se um editor criar um conjunto de sockpuppets e os usar para reforçar um lado. E se alguém trazer amigos de fora da Wikipédia que nunca ou mal editaram anteriormente? E editores registrados há poucos dias? ... etc. Mas, novamente, o que impede que sockpuppets e outras pragas invadam uma discussão de consenso? Nada. Mais adiante: O voto tem a aparência externa de justiça estritamente objetiva mas está fortemente sujeito a produzir resultados contaminados por aliciamento de votantes. Ora, o consenso padece do mesmíssimo problema de aliciamento de debatedores e a subjetividade e incertezas atingem níveis muitíssimo mais elevados.
- Votações desencorajam a observância dos princípios do projeto... Em votações, onde o que conta é apenas o número de votos e não o valor dos argumentos, os editores sentem que seu direito ao voto é uma permissão para votar sem critérios e sem nenhum respeito ao que já foi estabelecido antes e deveria nortear a decisão.... O costume de votar conforme "sua própria consciência" desencoraja que os editores estudem e citem as regras e recomendações... etc. Nada mais arbitrário do que atribuir esses problemas à votação em si e não ao comportamento irregular ou desinformado dos participantes. É claro que todo votante deve obedecer aos princípios gerais da Wikipédia, pois todo wikipedista deve seguir esses princípios em todas as suas ações dentro da Wikipédia, e a votação não é exceção a isso. Por que seria? Não há motivo nenhum para supor que numa votação - só porque é uma votação - eles se sentiriam autorizados a agir contra as regras.
- Votações na Wikipédia possuem (pelo menos) uma falha inerente, qual seja, que elas são semi-permanentes enquanto os grupos de discussão da comunidade não o são. Um grupo de discussão da comunidade muda com os membros da comunidade.... Votações, por outro lado, são pregadas na parede - e, pior ainda, a melhor maneira de livrar-se de uma votação é criando outra votação contra ela. Votações são especialmente injustas com aqueles que vieram depois. Alguém que entre numa situação na qual os dados já foram lançados e que nem sequer tiveram a oportunidade de manifestar-se. Deve ser entendido que, ao votar, aquilo que você faz, é, para todos os efeitos, permanente. Difícil encontrar um trecho mais recheado de meias-verdades e preconceitos. Sim, as votações são semi-permanentes, mas não são eternas e podem ser refeitas a qualquer momento para acompanhar a evolução do pensamento da comunidade. Se nem mesmo os Cinco Pilares são absolutamente eternos, muito menos o serão as políticas secundárias. E para aqueles que chegaram depois de um consenso ter sido concluído, encontrarão, assim como nas votações, o mesmo problema de bater em uma porta que já fechou. Mas mesmo assim, a discussão não termina necessariamente, assim como não precisa terminar ao fim de uma votação. Sempre se pode voltar a um tema já discutido antes e chegar a um novo resultado. Mas seria impossível se chegar a qualquer consenso se deixarmos os debates perenemente abertos à espera de todos os retardatários. Como se sabe, a Wikipédia recebe diariamente uma multidão de novos colaboradores. Não podemos ficar sentados esperando que a população global do planeta se manifeste. A fila dos nossos problemas, que é quilométrica, precisa andar.
Além do mais, o que talvez seja a sua inconsistência mais escancarada é o fato de que o sistema do consenso traz embutida em si uma anomalia "jurídica" e uma contradição essencial que para qualquer observador imparcial seria suficiente para invalidá-lo dentro do arcabouço doutrinal da Wikipédia: a figura do juiz do consenso, que não existe oficialmente mas existe na prática, uma extra-oficialidade que deixa todas as consciências satisfeitas e descansadas, mesmo que isso seja uma flagrante violação do "espírito Wiki" defendido pelos próprios fãs do consenso. A Wikipédia não admite figuras de autoridade, pois prega-se e enfatiza-se reiteradamente que todas as decisões devem ser coletivas. Existem sim autoridades administrativas, como os administradores, eliminadores, reversores, etc, mas elas não são qualificadas automaticamente para a tomada de decisões sobre a filosofia das discussões, ou seja, sobre o mérito e o peso dos argumentos. Mas para um consenso ser encerrado é imprescindível que alguém tome a palavra final e decida se os argumentos e a participação foram ou não suficientes para a decisão. Nos casos mais indistintos, isso automaticamente anula todo o significado do debate anterior e transforma o resultado de um consenso em uma interpretação inteiramente arbitrária, e não em uma informação objetiva. Não se pode trabalhar assim. A coisa se torna mais complicada se levarmos em conta uma pesquisa realizada por cientistas de universidades da Hungria e Finlândia, que chegaram à conclusão de que os "consensos" da Wikipédia raramente são obtidos com base no mérito dos argumentos, mas dependem de outros fatores, incluindo a intervenção externa (nosso juiz ou outra "autoridade").[2] Outro estudo diz o mesmo. O que reforça significativamente a imagem de que o modelo aqui adotado contradiz a premissa do consenso como um acordo coletivo e dissolve de vez a ilusão de que ele pode ser obtido legitimamente aqui dentro com base nas força das ideias e na maioria realmente representativa, e não na irracionalidade e no sentimentalismo de um punhado de editores vociferando até esgotar a paciência dos adversários e vencendo-os pelo cansaço. Às vezes, até, e indignamente, o consenso é proclamado de forma sorrateira, no apagar das luzes de um debate abandonado, em uma decisão unilateral, como aconteceu na Wikipédia inglesa no caso da eliminação da página Críticas à Wikipédia, o que se torna especialmente sintomático do estado de coisas justamente pelo tema espinhoso do artigo. Sim, isso realmente acontece. Se fosse uma votação, não aconteceria.
Ligado a isso está outro aspecto negativo do consenso, o de que ele pode favorecer a "ditadura das minorias". Um tema polêmico pode ficar atolado repetidas vezes em consensos inconclusivos, com maiorias pequenas consideradas não-representativas da vontade da comunidade, automaticamente favorecendo o ponto de vista da minoria, o que não tem muita lógica em um projeto coletivo que se presume igualitário, mesmo que se diga oficialmente que a Wikipédia não é uma experiência política, nem uma democracia, nem uma anarquia, nem uma oligarquia (o que ela é, ainda não se sabe ao certo). E contradiz frontalmente a própria noção de que as decisões devam refletir a vontade da comunidade, o que se encadeia em outra afirmação contraditória: a Wikipédia não se rege necessariamente pela vontade da maioria, alegando-se que o que é certo nem sempre é popular, e o que é popular nem sempre é certo. Ora, mas quem vai decidir isso? Vamos chamar de novo nosso "salvador", o juiz do consenso? O que se pode entender por "vontade da comunidade" senão a maioria, e não uma minoria que faz prevalecer seu ponto de vista contra o grupo maior sob a única desculpa de que todos devem ser ouvidos? É claro que todos devem ser ouvidos, mas quando chega o momento decisivo, quando se quer saber se temos uma maioria suficiente, onde está o parâmetro orientador? Não há. E não havendo, por definição - ou, neste caso, indefinição - o consenso como sistema cai por terra, porque ele jamais foi esclarecido e ninguém sabe ao certo o que ele é.
O principal a termos em mente é que o consenso não é um objetivo em si, mas é um simples instrumento para um conhecimento da vontade da comunidade que conduza, enfim, a uma tomada de decisão. O que desejamos desde o início é decidir alguma coisa, e não perdermos tempo em discussões pelo simples prazer de discutir, por mais que alguns se deleitem em passar mais tempo discutindo do que construindo conteúdo ou organizando as páginas problemáticas. É o anseio pela decisão o motor de todo o debate.
É óbvio que o debate é sempre essencial para se definir qualquer coisa. A votação pura e simples, sem discussão prévia, também não é uma boa solução, mas o conceito de votação qualificada, que já tem sido adotado em vários locais da Wikipédia, exigindo o voto justificado ou qualificado e incluindo debates prévios e\ou concomitantes, é maior do que o de consenso e o de votação simples e os engloba, e deveria ser instituído de uma vez por todas como a ferramenta única para a tomada de decisões na Wikipédia, acabando com essa incongruência politicamente correta do consenso, e prevenindo também uma potencial superficialidade das votações simples.
Em termos de clareza de resultado o consenso não é páreo para a votação qualificada - e nem mesmo para as votações simples! - e é surpreendente que isso ainda não tenha sido reconhecido à larga, e se fique constantemente a bajular o consenso como um reflexo mais fiel da realidade do que a votação. Todos os pontos positivos apontados pelos favoráveis ao consenso - o debate, os ajustes e concessões de parte a parte, o acordo final - estão presentes no processo de votação qualificada. Se a votação simples não permite o debate ou minimiza a sua importância, a votação qualificada está aí para remediar isso, com um sistema em que os participantes efetivamente dialogam e não deixam seu voto positivo antes de seus questionamentos terem sido respondidos satisfatoriamente. E quando eles não são, votam contra. Ou seja, a votação, quando consciente e responsável, expressa perfeitamente a necessidade de haver um acordo entre as partes, onde se exerce em plenitude o direito de exigir a resposta do interlocutor, fazendo o voto de cada editor valer. Se às vezes o debate pode não existir em uma votação, é porque o tema é uma unanimidade, o que por si mesmo já é muito raro, e nestes casos tanto consenso como votação se equivalem em eficiência. O problema é nos casos duvidosos, apertados, confusos. Aqui é que a porca torce o rabo e o consenso fracassa miseravelmente, podendo tornar-se, muito fácil, instrumento de manipulação política, consagrando subjetividades tão inextrincáveis quanto indesejáveis. A votação tem a grande vantagem de ser a ratificação clara e objetiva do resultado dos debates. Ninguém pode contestar o resultado de uma votação, pois é pura matemática, mas o que temos visto é que os consensos podem acabar de maneira polêmica, emocional e questionável.
Resumindo, votação qualificada = consenso + voto. Como não preferir esta forma participativa e dialogada de votação se queremos conhecer inquestionavelmente a vontade da comunidade??? Mas não prefere-se, e o consenso ainda é o queridinho da política oficial, enquanto que a votação é a gata borralheira, a última escolha, como se fosse a indignidade final, pois parece que todos estamos ou ofuscados pelo ideal e perdemos contato com a realidade, ou nos julgamos reencarnações iluminadas de Diderot e d'Alembert e acreditamos que a simples pronúncia do nome consenso, como se fosse uma palavra mágica, vai eliminar todos os problemas de burocracia, de confusão e de incertezas na hora de decidir coisas na Wikipédia, instaurando automaticamente a Idade Dourada à qual presidem o Amor e a Sabedoria... qual! Somos semibárbaros, não nos enganemos. O baixo nível de muitos dos debates não permite ilusões a respeito da suposta sabedoria e equilíbrio da "consciência coletiva" da Wikipédia. E parece que a barbárie que carregamos nos obriga ao obscurantismo, e ainda temos de nos agarrar a mitos. Preferimos as dúvidas e impasses à certeza, mesmo quando a certeza está ao alcance da mão e bastaria depositar um voto para obtê-la.
Ok, esta proposta também pode ser utópica, mas se for o caso, o será mais pela inércia da máquina, que é imensa... Alterar o sistema custaria no mínimo uma fortuna em tempo e esforço, e poderia, sem querer ser catastrofista, infligir um sério golpe na Wikipédia, pois se ela é o gigante que é, o é também, e talvez muito principalmente, por ser assim contraditória e inconsistente. Muito cômodo para todos. Nos esquivamos de todos os golpes e críticas porque somos feitos de fumaça. Voluntariamente. Porém, para um gigante, ter pés de barro é coisa a preocupar. Bem, talvez seja demais esperar que seja diferente sendo a Wikipédia construída por quem a constrói: o "eu-ninguém-todomundo" chamado "mente coletiva", cuja educação média é baixa. As estatísticas o provam. A baixa qualidade geral do conteúdo da Wikipédia o prova também. O que mais impressiona é que apesar de tudo isso arrostemos tudo e ainda estejamos aqui até agora impávidos, e na boca de todo povo. E deixando algumas contribuições culturais inegavelmente valiosas. Isso quem sabe justifique o resto, como as pepitas preciosas no fundo de um garimpo cheio de areia suja.
- .... Mas enfim, já que a Wikipédia se orgulha de incentivar a ousadia em seus voluntários, e levando em conta que aqui todo desastre pode ser revertido por mais estupendo que seja, a proposta de mudança permanece, e vale dizer: por que não experimentar?
Tetraktys, 15 de janeiro de 2013