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Usuário:AltCtrlDel/Espaco de estudos/Carneiro da Cunha

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Cunha, Manuela Carneiro da. "Religião, Comércio e Etnicidade: uma interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em lagos no século XIX" & " Etnicidade: da cultura residual mas irredutível". In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986. (pp.85-108)[editar | editar código-fonte]

Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em Lagos no século XIX. Tema da identidade étnica dos “descendentes de brasileiros” durante o período de formação da comunidade, essencialmente ao longo do século XIX. Pode parecer paradoxal que a maioria desses iorubanos, que afinal retornavam à pátria, tivesse preferido identificar-se como membros de uma comunidade “brasileira”. É preciso ter em mente, no entanto que nem Lagos nem Badagry, eram suas cidades de origem e sim pontos de passagem, entrepostos do tráfico transatlântico de escravos. (p.87) Fidelidade ostensiva à religião católica. Eram tão religiosos os brasileiros católicos de Lagos que o termo “agudá” passou a denotar, ao mesmo tempo, “brasileiro” e “católico”, apesar da grande comunidade de brasileiros muçulmanos que, conforme vimos, foram provavelmente os primeiros a retornarem à África. (p. 87) Vê-se o quanto pode ser falacioso procurar, numa bagagem cultural, a explicação de traços de identificação étnica. Ao contrário, a noção que se depreende é que a tradição cultural serve, por assim dizer, de “porão”, de reservatório onde se irão buscar, à medida das necessidades no novo meio, traços culturais isolados do todo, que servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação étnica. A tradição cultural seria, assim, manipulada para novos fins, e não uma instância determinante. (p. 88) Por que o catolicismo? Parece-me que esta religião fornecia ao grupo uma identidade exclusiva, que o distinguia ao mesmo tempo dos saro protestantes e dos lagosianos animistas. Havia muitos brasileiros muçulmanos, mas o Islã não poderia talvez servir de identificação por ser uma religião em plena expansão desde o começo do século XIX. (p. 93) Tentando sintetizar, teríamos portanto três opções para aqueles que retornavam do Brasil e seus descendentes: um primeiro grupo voltava à sua cidade de origem, retraçava sua parentela e reassumia plenamente os costumes tradicionais e sua identidade de antes da escravidão. Este grupo não fazia, portanto, parte da comunidade brasileira. Um segundo grupo, explorava ao mesmo tempo sua identidade de membro das cidades-Estado do interior e de repatriate. Enfim, o terceiro grupo, situado principalmente nas cidades costeiras, em virtude das oportunidades de comércio lá existentes e, eventualmente, das dificuldades de acesso ao interior, continuava ostentando a identidade brasileira. (p. 93-94) Idéia de grupos étnicos de Cohen: grupos étnicos são formas de organização que respondem às condições políticas e econômicas contemporâneas e não vestígios de organizações passadas. Elas se servem do arsenal cultural não para conservá-lo como um todo – no caso dos brasileiros, eles dispunham, alias, de um duplo arsenal, ioruba e brasileiro – mas para selecionar traços que servirão de sinais diacríticos para se exibir a afiliação a um grupo. (p. 94) Utilização da etnicidade em sociedades multiétnicas: 1- Um mesmo grupo pode usar identidades diferentes, dependendo do interesse específico que quer explorar. 2- A estrutura é compartilhada enquanto os símbolos diferenciam. 3- Para poder diferenciar grupos é preciso dispor de símbolos inteligíveis a todos os grupos que compõem o sistema de interação. (p. 94-95)

Etnicidade: da cultura residual mas irredutível A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna cultura de contraste: este novo princípio que a subtende, a do contraste, determina vários processos. A cultura tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos. (p. 99) A escolha dos tipos de traços culturais que irão garantir a distinção do grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presença e da sociedade em que se acham inseridos, já que os sinais diacríticos devem poder se opor, por definição, a outros de mesmo tipo. (p. 100) A cultura não é algo dado, posto, algo dilapidável também, mas algo constantemente reinventado, recomposto, investido de novos significados; e é preciso perceber a dinâmica, a produção cultural. (p. 101) Adequação da identidade étnica como autoconsciência de grupos. E portanto subentende juízos de valor e questões de legitimação, tanto de tais organizações quanto de estudo sobre elas. Há quem nos tente convencer de que a questão “racial” se dissolve na de classe, e nesta negação da especificidade da questão étnica conjugam-se às vezes os defensores da democracia racial com os da democracia tout court, expulsando, por exemplo, os negros como uma falsa categoria. Os índios, pelo contrário, no momento, são uma categoria legítima. Porem, escreve Cardoso de Oliveira (1976), sua identidade étnica, como a de qualquer grupo, é uma ideologia. (p. 103) A etnicidade não difere, do ponto de vista organizatório, de outras formas de definição de grupos, tais como grupos religiosos ou de parentesco. Difere, isto sim, na retórica usada para demarcar o grupo, nestes casos uma assunção de fé ou de genealogias compartilhadas, enquanto na etnicidade se invocam uma origem e uma cultura comuns. (p. 107) A etnicidade, como qualquer forma de reivindicação cultural, é uma forma importante de protestos eminentemente políticos. Reconhecer o que diz, o protesto, a resistência, há quem o faça. Mas o que ela diz, di-lo de certa maneira. Não há por que pensar que essa maneira seja um balbuciar. (p. 108)