Era de Prata russa

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A princesa-cisne (1900) por Mikhail Vrubel. No poema de Pushkin, ela é descrita como quem "eclipsa a luz de Deus durante o dia, ilumina a terra à noite, a lua brilha sob sua foice e uma estrela arde em sua fronte".[1] Em diversos escritos de pensadores da Era de Prata, como Blok, Berdiaev e Florensky, a Rússia era vista metaforicamente como uma noiva ainda não atingida, ou como o ideal feminino da sofiologia.[2][3]

Era de Prata ou Idade da Prata (em russo: Сере́бряный век) da cultura russa é um termo tradicionalmente aplicado pelos filólogos russos à última década do século XIX e às primeiras duas ou três décadas do século XX. Foi um período excepcionalmente criativo na história do pensamento, arte e literatura russa, comparável à Idade de Ouro do século anterior. O termo Idade de Prata foi sugerido pela primeira vez pelo filósofo Nikolai Berdiaev, mas só se tornou habitual referir-se assim a esta era na literatura na década de 1960. No mundo ocidental outros termos, incluindo Fin de siècle e Belle Époque, são um pouco mais populares. Em contraste com a Idade de Ouro, as poetisas e escritoras influenciaram consideravelmente o movimento, e a Idade de Prata é considerada o início da aceitação acadêmica e social formal das escritoras na esfera literária russa.[4][5][6]

História[editar | editar código-fonte]

Iniciada por volta da década de 1890, a Era de Prata refere-se a uma época de intenso modernismo e efervescência filosófica na Rússia, tal como ocorria em outras culturas europeias, que se manifestou mais viva particularmente na poesia e arte russa.[6] Seguiu-se ao ápice do chamado Iluminismo Russo (provestitel'stvo) das décadas de 1860 e 1870, em que fora sedimentada a crítica literária filosófica e o romance filosófico (como com as obras de Turgueniev, Dostoiévski e Tolstói).[5]

Na literatura, destacam-se como grandes expoentes da Era de Prata Aleksandr Blok, Mikhail Kuzmin, Osip Mandelstam, Anna Akhmatova, Boris Pasternak, Marina Tsvetaeva, Velimir Khlebnikov, Vladimir Maiakovski.[6] Na pintura, Mikhail Vrubel, Leon Bakst e Viktor Borisov-Musatov,[7] também se associando Alexandre Benois, Marc Chagall, Kazimir Malevich; e na música, os compositores Sergei Rachmaninoff e Alexander Scriabin.[5]

A Era de Prata pode ser dividida na literatura em dois períodos com tendências contrastantes: até 1910, caracterizada pelo simbolismo russo; depois, pelo pós-simbolismo ou por movimentos de ruptura de avant-garde, em que o cenário era dominado pelos chamados acmeístas e futuristas.[6]

Muitos simbolistas russos adotavam teores do neorromantismo, e seus poetas se inspirarem particularmente em Nietzsche, Wagner e Baudelaire, com referência notória ao conceito de símbolo deste último, avançada no poema programático Correspondências de 1857.[6] Alguns de seus mais importantes expoentes olhavam com fervor para a literatura russa do século XIX,[2] e os modernistas da Era de Prata buscavam nela se inspirar para formar uma identidade cultural, escolhendo como modelo principal Alexandre Pushkin, grande representante romântico da Idade de Ouro passada.[8] Talvez o gatilho mais importante que desencadeou o movimento dos jovens simbolistas russos foi a filosofia de Vladimir Soloviov, que criticava a tradição racionalista, adotava um conceito de eterno feminino e alta idealização do amor, e elencava o "pan-mongolismo" como um fator transformador da civilização ocidental.[6]

Embora se possa dizer que os ideais da Idade da Prata aparecem nítidos nos Versos sobre a Bela Dama (1901) de Alexander Blok, estudiosos ampliaram sua estrutura cronológica para incluir as obras da década de 1890, começando com o manifesto de Nikolai Minsky Com a luz da consciência (1890), o tratado de Dmitri Merezhkovsky Sobre as razões do declínio da literatura russa contemporânea (1893), o almanaque Simbolistas russos de Valery Bryusov (1894) e a poesia de Konstantin Balmont e Mirra Lokhvitskaya.[9][10][11]

Houve uma crise do simbolismo em 1910, a partir das polêmicas entre Valeri Briusov, Blok e Viacheslav Ivanov; a fundação do jornal crítico e de vanguarda Apollon sob Serguei Makovski em 1909; e a formação de novos grupos. Um deles, de jovens poetas liderado por Nikolai Gumilev, foi primeiramente chamado "adamismo", mas depois "acmeísmo", indicando seu programa de aderir ao significado em sua camada mais superficial e de topo, contra as profundezas metafísicas do simbolismo, e de construir familiaridade na polissemia. Houve também o grupo dos futuristas russos, em torno de Viktor Khlebnikov, chamado Hilaea, que depois se autodenominavam budetliane. Destacaram-se nele os poetas Maiakovski e Kruchenyk, bem como muitos pintores de vanguarda.[6]

Nessa era, também ocorreram grandes repercussões no pensamento. Houve um "Renascimento" religioso e filosófico (também chamado de "renascimento espiritual" por Berdiaev), no campo da filosofia e teologia das duas primeiras décadas do século XX. Esse renascimento foi muito associado aos escritos Vasily Rozanov, Nikolai Berdiaev, Sergei Bulgakov, Semyon Frank, Pavel Florensky, Lev Shestov, Alexei Losev. Ele foi muito caracterizado por tendências de humanismo religioso (com variantes políticas, desde liberais a radicais) e idealismo, com um intenso desenvolvimento da filosofia religiosa russa e do ensino dos escritos de Soloviov.[5][12][13] Frente ao cenário de decadência social russa, esses pensadores apontavam um foco na experiência individual, no valor da pessoa e ao imaginário de um futuro. Também houve o que foi chamado por muitos acadêmicos de "revolução erótica", em que os filósofos da Era de Prata afirmavam a importância moral e estética de Eros, em que o amor era unificador de todos os campos.[5] A sofiologia russa, principalmente de Soloviov e Bulgakov, tornou-se a quintessência do sincretismo cultural da Era de Prata.[12] Houve, assim, o desenvolvimento de novas escolas filosóficas russas estreitamente associadas, como o personalismo de Rozanov e Nikolai Losski e o existencialismo de Shestov. Junto, ocorreu uma efervescência de surgimento de outros círculos, crenças e movimentos, como do eurasianismo, neokantianismo, marxismo e cosmismo.[5] Além do mais, também houve um renascimento do ocultismo e misticismo esotérico na cultura da época.[14][15]

O neoidealismo russo desenvolvido por pensadores desse período contrastava ao idealismo alemão, tentando, além de reagir contra o positivismo, responder ao hegelianismo e à falência do idealismo absoluto.[16][17] Historiadores culturais apontam que a obra Problemas do Idealismo (1902) foi o marco da revolta contra o positivismo durante esse período.[18] Pensadores alemães eram criticados e se avançavam novas interpretações dos estudos de Platão por Soloviov e Losev. Eles afirmavam que a Teoria das Formas não negava a matéria, e davam valor à individualidade de uma forma caracterizada por um senso de acesso direto da realidade, como afirma Nikolai Losski. Isso os levava a considerar os aspectos sociais da condição humana e que o caráter ideal na realidade não era apenas subjetivo, mental ou ilusório, uma consideração que era compartilhada também por filósofos pré-revolucionários.[16][17]

Província (1919) por Boris Kustodiev

O legado do pensamento dessa era inclui teorias sobre filosofia da cultura, por Ivanov, Berdiaev, Florensky; filosofia legal e do Estado, por Novgorodtsev, Struve, Bulgakov; da economia, por Struve, Bulgakov; da epistemologia, principalmente por Sergei Trubetskoi e pela escola de intuitivismo russo de Nikolai Losski e Semyon Frank; da filosofia do símbolo e mito, com Andrei Biéli, Ivanov, Florensky e Losev; da ética, com Losski, Ilyin e Vysheslavtsev; da estética e arte, com Shestov, Bely, Florensky, Lapshin, Losev; dentre outros estudos. Muitos de seus expoentes eram ativos na política, com preocupação cívica, e buscaram compreender e dar respostas à crise revolucionária.[12] Uma das propostas era o anarquismo místico, defendido nos escritos de Georgi Chulkov e de Ivanov.[19]

Houve também uma "Era de Prata da matemática", que precedeu a posterior Era Dourada. Valentin Poénaru afirma que o período "era comparável à Renascença na Europa". Essa renascença matemática foi avançada principalmente por Nikolai Luzin e também incluía Pavel Florensky como um contribuidor em seu círculo.[20]

Essa renascença cultural foi curta, interrompida pelas revoluções de 1905/1906, Primeira Guerra Mundial e a Revolução de 1917, culminando com a expulsão de 220 intelectuais em 1922 nos chamados "navios dos filósofos".[5] A Idade da Prata praticamente terminou após a Guerra Civil Russa, marcada pela morte de Blok e a execução de Nikolai Gumilev em 1921, bem como o aparecimento da coleção altamente influente de Pasternak, Minha Irmã é Minha Vida (1922).[11][21] O fim do modernismo russo também recebe um término pelo suicídio de Maiakovski em 1930.[11] A era foi relembrada com nostalgia por Makovsky e Akhmatova,[6] e pelos poetas emigrados, como por Georgy Ivanov em Paris e Vladislav Khodasevich em Berlim.[22]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Jiafu, He (2022). Images of Strong Strangers in Folklore Based on Russian and Chinese Folktales. Universidade Estatal de São Petersburgo.
  2. a b Rutten, Ellen (8 de março de 2010). Unattainable Bride Russia: Gendering Nation, State, and Intelligentsia in Russian Intellectual Culture (em inglês). [S.l.]: Northwestern University Press. pp. 77–100 
  3. Brouwer, Sander (28 de dezembro de 2021). «The Bridegroom Who Did Not Come: Social and Amorous Unproductivity from Pushkin to the Silver Age». In: Andrew, Joe; Reid, Robert. Two Hundred Years of Pushkin, Volume I: ‘Pushkin’s Secret’: Russian Writers Reread and Rewrite Pushkin (em inglês). [S.l.]: BRILL 
  4. Rosenthal, Charlotte (1992). «The Silver Age: highpoint for women?». In: Edmondson, Linda. Women and Society in Russia and the Soviet Union. Cambridge: Cambridge University Press. p. 32. ISBN 0-521-41388-5. OCLC 24430100 
  5. a b c d e f g Bykova, Marina F.; Steiner, Lina (22 de maio de 2021). «Introduction: On Russian Thought and Intellectual Tradition». In: Bykova, Marina F.; Forster, Michael N.; Steiner, Lina. The Palgrave Handbook of Russian Thought (em inglês). [S.l.]: Springer Nature 
  6. a b c d e f g h Gasparov, Boris (17 de fevereiro de 2011). «Poetry of the Silver Age». In: Dobrenko, Evgeny; Balina, Marina. The Cambridge Companion to Twentieth-Century Russian Literature (em inglês). [S.l.]: Cambridge University Press 
  7. Bowlt, John E. (2004). «Silver Age». In: Millar, James R. Encyclopedia of Russian History: S-Z, index (em inglês). [S.l.]: Macmillan Reference USA 
  8. Horowitz, Brian (1996). The Myth of A.S. Pushkin in Russia's Silver Age: M.O. Gershenzon, Pushkinist (em inglês). [S.l.]: Northwestern University Press 
  9. Proffer, Carl R.; Proffer, Ellendea (1975). The Silver Age of Russian Culture: An Anthology (em inglês). [S.l.]: Ardis 
  10. Terras, Victor; Landman, Alexander (1998). Poetry of the Silver Age: The Various Voices of Russian Modernism (em inglês). [S.l.]: Dresden University Press 
  11. a b c Basker, Michael (1 de junho de 2002). «The Silver Age: Symbolism and Post-Symbolism». In: Cornwell, Neil. The Routledge Companion to Russian Literature (em inglês). [S.l.]: Routledge 
  12. a b c Horujy, Sergey S. (22 de maio de 2021). «Russian Religious Philosophy: The Nature of the Phenomenon, Its Path, and Its Afterlife». In: Bykova, Marina F.; Forster, Michael N.; Steiner, Lina. The Palgrave Handbook of Russian Thought (em inglês). [S.l.]: Springer Nature 
  13. Obolevitch, Teresa (13 de junho de 2020). «Alexei Losev. 'The Last Russian Philosopher' of the Silver Age». In: Pattison, George; Emerson, Caryl; Poole, Randall A. The Oxford Handbook of Russian Religious Thought (em inglês). [S.l.]: Oxford University Press 
  14. Blok, Aleksandr Aleksandrovich (2008). The Rose and the Cross: Western Esotericism in Russian Silver Age Drama and Aleksandr Blok's The Rose and the Cross (em inglês). [S.l.]: New Grail Pub. 
  15. Mannherz, Julia (15 de outubro de 2012). Modern Occultism in Late Imperial Russia (em inglês). [S.l.]: Cornell University Press 
  16. a b Nethercott, Frances (31 de julho de 2019). Russia's Plato: Plato and the Platonic Tradition in Russian Education, Science and Ideology (1840–1930) (em inglês). [S.l.]: Routledge 
  17. a b Chernyak, Leon (outubro de 1988). «The theme of language in the works of P. A. Florenskii and in the hermeneutics of H.-G. Gadamer». Studies in Soviet Thought. 36 (3): 203–220. ISSN 0039-3797. doi:10.1007/bf01043782 
  18. Dragunoiu, Dana (31 de agosto de 2011). Vladimir Nabokov and the Poetics of Liberalism (em inglês). [S.l.]: Northwestern University Press 
  19. Evtuhov, Catherine (18 de outubro de 2018). The Cross and the Sickle: Sergei Bulgakov and the Fate of Russian Religious Philosophy,1890–1920 (em inglês). [S.l.]: Cornell University Press 
  20. Papadopoulos, Athanase (20 de outubro de 2023). «Pavel Florensky and his world». arXiv 
  21. Rylkova, Galina (21 de agosto de 2014). The Archaeology of Anxiety: The Russian Silver Age and Its Legacy (em inglês). [S.l.]: University of Pittsburgh Pre 
  22. Bethea, David; Frank, Siggy (17 de fevereiro de 2011). «Exile and Russian Literature». In: Dobrenko, Evgeny; Balina, Marina. The Cambridge Companion to Twentieth-Century Russian Literature (em inglês). [S.l.]: Cambridge University Press