Revolução dos Ganhadores

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Revolução dos Ganhadores

Escravos transportando um homem numa liteira, Bahia.
Período De 1 a 13 de junho de 1857 * (1 semana e 5 dias)
Local Salvador, Bahia,
Causas
  • Revogação da portaria em vigor
Objetivos Aprovação de portaria municipal que afetou o funcionamento dos carregadores em Salvador
Características Greves, bloqueios, tumultos

A Revolução dos Ganhadores, também conhecida como a greve dos carregadores africanos de 1857, foi uma greve trabalhista que envolveu carregadores africanos, conhecidos como ganhadores, na cidade brasileira de Salvador, Bahia.[1] A greve começou após a aprovação de uma lei municipal que mudou a forma como os ganhadores operavam na cidade. A greve terminou com uma vitória parcial dos grevistas, pois a Câmara Municipal substituiu o decreto-lei por outro que eliminou alguns dos dispositivos mais impopulares.[2] O evento é denominado por João José Reis como a primeira greve geral da história do Brasil.[3][4]

Durante o século XIX, os ganhadores eram cruciais para o transporte de mercadorias por Salvador. O comércio era dominado por africanos escravizados e livres que trabalhavam juntos em grupos autônomos conhecidos como cantos. Embora os ganhadores tivessem muita liberdade para se movimentar pela cidade, o medo de uma revolta de escravos, como a revolta dos Malê em 1835, levou o governo a tentar exercer mais controle sobre os ganhadores.[5] Em 1836, o governo provincial da Bahia promulgou uma lei que exigia que os ganhadores se registrassem no governo, usassem crachás de identificação e operassem sob a supervisão direta de capitães, o que substituiu o sistema de canto.

A lei se mostrou extremamente impopular, não apenas entre os ganhadores, mas também com o público em geral e, no ano seguinte, o sistema de canto foi restaurado e a lei deixou de ser aplicada. Em 1857, o conselho da cidade de Salvador promulgou uma nova lei modelada após a lei de 1836, que novamente exigia que os ganhadores se registrassem e usassem crachás de identificação de metal no pescoço. Os ganhadores eram obrigados a pagar uma taxa pelas etiquetas, enquanto os libertos também tinham que fornecer um fiador que se responsabilizaria pelo ganhador. Para protestar contra a nova lei, os ganhadores da cidade entraram em greve no dia 1º de junho, mesma data em que a lei entrou em vigor.[6]

A greve efetivamente interrompeu o transporte dentro da cidade. Jornais locais noticiaram a greve com matérias de primeira página e notaram o impacto que a ação estava tendo na economia local. Em poucos dias, o presidente da província, João Lins Cansanção, Visconde de Sinimbu, ordenou à Câmara Municipal que rescindisse a exigência de taxa da lei, o que a Câmara Municipal fez.[7] No entanto, a greve continuou e, em uma semana, a Câmara Municipal anunciou que estava revogando a lei, substituindo-a por uma nova. Essa nova lei ainda exigia que os ganhadores se cadastrassem e usassem crachás de identificação no pescoço, mas retirou a taxa de inscrição e mudou as regras dos libertos para que não precisassem mais ter um fiador, mas apenas um "certificado de fiança" de um autoridade ou um cidadão respeitável. Com essas mudanças, a greve continuou, mas mais ganhadores se inscreveram e voltaram ao trabalho e, no dia 13 de junho, o Jornal da Bahia informou que a greve havia efetivamente terminado.[8]

O historiador brasileiro João José Reis atribui o sucesso parcial da greve à solidariedade entre a comunidade afro-brasileira de Salvador e vê o evento como um dos primeiros exemplos de pan-africanismo que se tornaria mais comum em toda a Bahia no final do século XIX.[9]

Relacionamento contextual[editar | editar código-fonte]

Escravidão urbana em Salvador[editar | editar código-fonte]

A tora pesava 15 quilos, e o menino só conseguia se mover carregando-a na cabeça.

Em 1857, Salvador, a capital da província brasileira da Bahia e uma importante cidade portuária no comércio atlântico de escravos[10], tinha uma população de mais de 50.000 pessoas.[11] Os brasileiros brancos constituíam cerca de 30% da população, enquanto os negros constituíam cerca de 40% da população.[6] Ao todo, os afro-brasileiros, que incluíam escravos, libertos e mestiços de ascendência africana, compunham a maioria da população da cidade. Os escravos compunham entre 30 e 40 por cento da população, sendo a maioria nascido na África, e eram nagos, ou membros do povo iorubá da área ao redor da baía de Benin.[12]

O sistema de escravidão urbana em Salvador diferia em alguns aspectos da escravidão nas plantações. Muitos dos escravos em Salvador tinham uma liberdade de movimento comparativamente alta e se dedicavam a várias formas de trabalho braçal nas ruas, em ofícios como pedreiro ou carpinteiro.[3] Não era uma prática incomum para senhores de escravos permitir que seus escravos vivessem em lugares alugados longe de suas casas e retornar apenas uma vez por semana para dar a seus senhores uma quantia em dinheiro que eles ganharam com seu trabalho, sendo permitido manter o restante . Em muitos casos, esses escravos trabalharam ao lado de libertos, e alguns escravos conseguiram economizar dinheiro suficiente para comprar sua alforria.[6]

Ganhadores[editar | editar código-fonte]

Muitos negros em Salvador trabalhavam como trabalhadores conhecidos como ganhadores.[3] Esses ganhadores trabalhavam como carregadores, transportando mercadorias, cargas e pessoas por toda a cidade.[6] O transporte na cidade dependia em grande parte desses ganhadores, pois outras formas de transporte eram indisponíveis ou economicamente inviáveis para a maioria dos comerciantes.[13] Na época, era uma profissão totalmente exercida por negros, não havendo brancos ou pardos trabalhando nessa área. Em visita a Salvador em 1847, Alexandre, barão de Forth-Rouen des Mallets, da França[14], escreveu que os negros constituíam "a maioria da população baiana" e eram "os únicos a serem vistos nas ruas, como bestas empregadas para carregar todo tipo de carga e que circulam carregadas de cargas pesadas".[15] Observação semelhante foi feita pelo explorador alemão Robert Christian Avé-Lallemant durante uma estada em Salvador em 1858, onde disse: "Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é preto". Cerca de 30 por cento dos escravos nagos em Salvador trabalhavam exclusivamente como ganhadores, e a maioria trabalhava em tempo integral ou meio período como tal.[6] Os ganhadores de Salvador organizaram-se em grupos de trabalho conhecidos como cantos, com cada canto abrangendo uma determinada área da cidade. Esses cantos também funcionavam como importantes espaços públicos para os africanos em Salvador, pois serviam como locais de encontro onde as pessoas podiam interagir, comprar e vender mercadorias e praticar práticas religiosas.[15]

Revolta dos Malês e suas consequências[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Revolta dos Malês
Escravos de cavanhaque carregando ferramentas em Salvador (Circa 1800)

Em 1835, um grupo de escravos e libertos muçulmanos de Salvador, em sua maioria iorubás, revoltou-se no que o historiador João José Reis chamou de "a mais dramática rebelião escrava urbana da história do Brasil". A revolta acabou sendo reprimida e, como resultado, cerca de metade dos presos indiciados por envolvimento eram ganhadores.[15] Além disso, 17% dos indivíduos eram artesãos que provavelmente trabalharam nos cantos e atuaram como os principais conspiradores do levante. Em junho daquele ano, em resposta ao levante, o Legislativo Provincial promulgou a Lei 14, que substituiu os cantos por capatazias.[6] Nesse sistema, as capatazias seriam supervisionadas por um capataz (traduzido como capataz) que receberia um salário diretamente dos ganhadores por ele supervisionados e, de acordo com a lei, "policiaria os ganhadores". Além disso, os ganhadores seriam obrigados a se registrar no governo e usar pulseiras de metal com etiquetas de identificação.[12] Os ganhadores eram obrigados a se registrar mensalmente e enfrentariam uma taxa de 10.000 réis caso não o fizessem. Um sistema de inspetores foi estabelecido para supervisionar seus registros, policiar as áreas a que foram designados e servir como superiores dos capatazes. A lei, que entrou em vigor em abril de 1836, era impopular entre os ganhadores e o público em geral.[3]Artigo publicado no Diário da Bahia em maio de 1836 criticava os capatazes e os crachás, argumentando que eles acarretariam aumento de preços e dificultariam a circulação dos ganhadores pela cidade. Além disso, o jornal considerou que a província não deveria se envolver em leis relativas a ganhadores, o que eles consideravam ser um assunto que deveria ser deixado para o governo municipal.[6] As autoridades tiveram dificuldades em fazer cumprir a lei, pois muitos ganhadores se recusaram a se registrar, deram informações falsas, se recusaram a pagar multas e se mudaram para partes da cidade onde a lei não era rigorosamente aplicada.[15] Empresários e comerciantes em algumas áreas reclamaram do efeito que a lei teve em seus negócios, com o número de ganhadores ativos nessas áreas caindo consideravelmente. Por fim, em 1837, as autoridades cederam, os cantos foram restaurados e a lei deixou de ser aplicada.[3]

Consequências[editar | editar código-fonte]

Illustration showing two Brazilian slaves in Bahia carrying cloth covered sedan chair on shoulders with woman inside
Ilustração mostrando dois escravos na Bahia carregando uma liteira forrada de pano com uma mulher dentro.

A greve teve um grande impacto de curto prazo na economia e na história de Salvador, já que efetivamente interrompeu o transporte dentro da cidade por uma semana. Em 1997, Reis chamou o evento de a primeira greve geral da história do Brasil, ocorrendo vários anos antes de uma greve mais conhecida envolvendo impressores no Rio de Janeiro em 1858.[6] No final das contas, a greve foi parcialmente bem-sucedida em se opor ao decreto municipal. Embora os ganhadores ainda fossem obrigados a se registrar e usar crachás, eles não eram obrigados a pagar por eles, e os libertos achavam muito mais fácil obter um "certificado de garantia" do que encontrar um fiador.[15] Segundo Reis, o sucesso parcial da greve pode ser atribuído em grande parte ao caráter organizado dos cantos, que permitia uma forma de trabalho organizado entre os ganhadores. Além disso, os fortes laços étnicos entre os nagos ajudaram a fomentar a solidariedade entre os grevistas e a comunidade afro-brasileira em Salvador, com Reis afirmando que a greve representava uma forma inicial de pan-africanismo que se espalhou pela Bahia no final do século XIX.[6]

Reis também afirma que as deficiências da greve podem ser atribuídas ao grande número de escravos que trabalhavam ao lado de libertos como ganhadores e eram mais propensos a desertar, servindo como fura-greves não intencionais. Em 1880, uma nova legislação removeu a exigência de que os ganhadores usassem crachás de metal, embora ainda exigisse que eles usassem a identificação do registro na manga direita de suas camisas.[16] Além disso, a nova legislação exigia que eles se registrassem na polícia e não diretamente no conselho da cidade. Nas décadas seguintes, a porcentagem de escravos trabalhando como ganhadores diminuiu e, em 1888, ano em que a escravidão foi abolida no Brasil, os escravos constituíam apenas cerca de 2,5% da população de Salvador.[16]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. «Entregadores do século 19 paralisaram Salvador na primeira greve do Brasil». tab.uol.com.br. Consultado em 22 de junho de 2023 
  2. «É GREVE!». Piseagrama. Consultado em 22 de junho de 2023 
  3. a b c d e Reis, João José (1997). «The revolution of the ganhadores': Urban labour, ethnicity and the African strike of 1857 in Bahia, Brazil». http://dx.doi.org/10.1017/S0022216X9700477X (em inglês). ISSN 0022-216X. Consultado em 22 de junho de 2023 
  4. Bahia, Defensoria Pública do Estado da. «Trabalhadores negros da primeira greve do Brasil são inocentados em Júri Simulado da Defensoria». Consultado em 22 de junho de 2023 
  5. Kettani, Malika (2016). Gooren, Henri, ed. «Bahia Muslim Slaves Rebellion; Rebellion of the Males, Brazil 1835». Cham: Springer International Publishing (em inglês): 1–10. ISBN 978-3-319-08956-0. doi:10.1007/978-3-319-08956-0_282-1. Consultado em 23 de junho de 2023 
  6. a b c d e f g h i Reis, Joao Jose (1997). «'The Revolution of the Ganhadores': Urban Labour, Ethnicity and the African Strike of 1857 in Bahia, Brazil». Journal of Latin American Studies (2): 355–393. ISSN 0022-216X. Consultado em 23 de junho de 2023 
  7. Reis, João José; de Aguiar, Márcia Gabriela D. (1996). «"CARNE SEM OSSO E FARINHA SEM CAROÇO": O MOTIM DE 1858 CONTRA A CARESTIA NA BAHIA» (PDF). CORE. Consultado em 24 de junho de 2023 
  8. Reis. «A greve - negra de 1857 na Bahia» (PDF) 
  9. «João José Reis: o pesquisador da escravidão que é um dos maiores escritores do Brasil». Cérebros da Ufba. 25 de junho de 2020. Consultado em 24 de junho de 2023 
  10. Centre, UNESCO World Heritage. «Historic Centre of Salvador de Bahia». UNESCO World Heritage Centre (em inglês). Consultado em 27 de junho de 2023 
  11. Reis, João José (maio de 1997). «'The Revolution of the Ganhadores': Urban Labour, Ethnicity and the African Strike of 1857 in Bahia, Brazil». Journal of Latin American Studies (em inglês) (2): 355–393. ISSN 1469-767X. doi:10.1017/S0022216X9700477X. Consultado em 27 de junho de 2023 
  12. a b Reis, João José (maio de 1997). «'The Revolution of the Ganhadores': Urban Labour, Ethnicity and the African Strike of 1857 in Bahia, Brazil». Journal of Latin American Studies (em inglês) (2): 355–393. ISSN 1469-767X. doi:10.1017/S0022216X9700477X. Consultado em 27 de junho de 2023 
  13. Oliveira, Aline Santos de (23 de outubro de 2020). «As Freguesias de Salvador: pontos de encontros do comércio das ganhadeiras libertas 1850-1888» (PDF) 
  14. «ELÉONORE FRANÇOISE AMBROISINE DELAUNAY - Le charqueador et le bagnard.». outreletemps.canalblog.com (em francês). 13 de agosto de 2019. Consultado em 18 de julho de 2023 
  15. a b c d e Reis, Joao Jose (1997). «'The Revolution of the Ganhadores': Urban Labour, Ethnicity and the African Strike of 1857 in Bahia, Brazil». Journal of Latin American Studies (2): 355–393. ISSN 0022-216X. Consultado em 18 de julho de 2023 
  16. a b Africa and the Americas : interconnections during the slave trade. Internet Archive. [S.l.]: Trenton, NJ : Africa World Press. 2005