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Literatura LGBT do Brasil

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A literatura LGBT do Brasil, entendida como a literatura escrita por autores brasileiros que envolve tramas ou personagens que fazem parte ou se relacionam com a diversidade sexual, tem uma tradição que remonta ao século XVII, especificamente à obra do poeta Gregório de Matos, que ao longo de toda a sua vida escreveu uma série de poemas satíricos de carácter homossexual sobre os seus adversários políticos. As primeiras obras narrativas a fazerem referência à homossexualidade, surgiram quase dois séculos depois, nas décadas de 1870 e 1880, das mãos de escritores como Joaquim Manuel de Macedo, Aluísio Azevedo e Raul Pompeia.[1]​ As obras desses autores, em sua maioria enquadradas na tendência do naturalismo, apresentavam uma visão da homossexualidade baseada em concepções da época, sob um estereótipo negativo de desvio sexual.[2]​ Em meio a esse contexto, surgiu o romance "Bom-Crioulo" (1895), escrito por Adolfo Caminha e tradicionalmente apontado como o iniciador da literatura LGBT brasileira, além de ser considerado o primeiro romance LGBT da América Latina.[3] Embora também compartilhasse uma visão negativa da homossexualidade, foi a primeira obra a focar sua trama em um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo.[4]

Histórico[editar | editar código-fonte]

O início do século XX viu a entrada de autores como João do Rio, que abordava a diversidade sexual em algumas de suas histórias e que era conhecido por ser homossexual, e a publicação de obras como "Pílades e Orestes", uma história homoerótica de Machado de Assis, e "O menino do Gouveia" (1914), história anônima considerada a primeira obra pornográfica LGBT do Brasil. O romance "Vertigem" (1926), de Laura Villares, destaca-se por ser o primeiro a abordar o lesbianismo escrito por uma brasileira,[5] embora também tenha um olhar moralista e condenatório sobre a protagonista.[5][6]

Durante a era pós-Estado Novo, vários textos continuaram a apresentar temas LGBT de forma sutil. A obra paradigmática desta tendência foi "Frederico Paciência" (1947), um conto de Mário de Andrade sobre uma amizade masculina com conotações homoeróticas que, apesar de não explicitar a orientação sexual das personagens, foi um dos primeiros a evidenciar esta atração de forma positiva.[7][8] A década de 1950 foi caracterizada pela publicação de dois romances clássicos da literatura brasileira que incluíam subtramas LGBT: "Grande Sertão: Veredas" (1956), de João Guimarães Rosa, e "Crônica da casa assassinada" (1959) de Lúcio Cardoso.[9] Esses romances abordavam a diversidade sexual de forma marcadamente diferente das obras anteriores, em tramas que exploravam conceitos como espiritualidade, travestismo, metafísica e desejo proibido.[10]

Até a segunda metade do século XX, a literatura homossexual masculina brasileira, diferentemente da tradição anglo-saxônica, tinha entre suas características comuns a reprodução de papéis bem definidos nas relações que retratava, com a figura de um homem forte e de características masculinas e outro mostrado como fraco e submisso, num análogo dos papéis sociais da época presentes nas relações heterossexuais, como pode ser visto em "Bom-Crioulo".[11] Além disso, era comum que figuras homossexuais masculinas e femininas fossem retratadas de forma caricatural ou exótica.[12] Destaca-se também a figura do Carnaval brasileiro, que na ficção foi mostrado por diversos autores como um momento em que as pessoas podiam esconder suas identidades enquanto desfrutavam de maior liberdade sexual e praticavam atos geralmente considerados ilícitos.[13]

O período da ditadura militar brasileira é caracterizado pela forte censura exercida pelo regime, embora eventos como os motins de Stonewall e o nascimento do movimento LGBT internacional também tenham ajudado a iniciar um boom na publicação de obras LGBT.[4][14] A escritora mais importante desse período foi Cassandra Rios, que, apesar de ser alvo recorrente de censura pelas temáticas lésbicas de suas obras, tornou-se a escritora brasileira de maior sucesso de todos os tempos, com períodos em que atingiu vendas de 300 mil livros por ano,[4] embora, simultaneamente, tenha sido ignorada pela crítica.[15] Com o tempo, Rios passou a ser considerada a iniciadora da tradição literária lésbica brasileira. Outros notáveis ​​autores de temática LGBT dos anos da ditadura, foram Gilberto Freyre e Aguinaldo Silva, este especialmente com o romance "Primeira carta aos andróginos" (1975).[4][16]

Também dessa época são as figuras de Caio Fernando Abreu, Silviano Santiago e João Silvério Trevisan, que iniciaram uma nova etapa na narrativa LGBT brasileira, influenciada pela literatura LGBT global.​ Abreu abordou a diversidade sexual e a homofobia desde sua primeira coletânea de contos e continuou a explorá-la nos anos posteriores, em contos como "Terça-feira gorda", de Morangos mofados (1982), que narra o encontro entre dois homens homossexuais durante o Carnaval do Brasil;[17]​ ou o romance Pela Noite (1983), talvez a primeira obra brasileira a abordar o HIV.[18]​ Destaca-se o romance Stella Manhattan (1985), de Silviano Santiago, um dos primeiros a ter uma personagem travesti como protagonista;[19] enquanto João Silvério Trevisan é reconhecido pelo romance Em nome do desejo (1983) e pela obra de não ficção Devassos no paraíso (1986).[11][20][12]

Da poesia do final do século XX podem ser citados autores como Francisco Bittencourt e Roberto Piva, que exploraram a homossexualidade e o corpo masculino em suas obras;[21] Waldo Motta, reconhecido por vincular questões relacionadas à diversidade sexual com motivos religiosos;[22] e os poetas Glauco Mattoso e Horácio Costa, com obras focadas na abordagem de práticas tabus e críticas à sociedade heteropatriarcal brasileira.[21]

As primeiras décadas do século XXI foram caracterizadas pela normalização e aumento da presença de protagonistas LGBT nas obras literárias brasileiras, muitos dos quais deixaram de ser apresentados com os estereótipos existentes em obras passadas.[23] Temas relacionados à diversidade sexual também começaram a aparecer. em obras de gêneros como histórico, policial, utópico,[24] e particularmente, na literatura juvenil.[25] Entre os autores de obras LGBT premiadas nas últimas décadas estão narradores como Santiago Nazarian, Natalia Borges Polesso, Tobias Carvalho e Cristina Judar.[24][26][27] Do lado da poesia, têm se destacado figuras como Angélica Freitas,​ Tatiana Nascimento e Ryane Leão.[14]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Valentin, Leandro Henrique (2013). «Representações da homossexualidade nos romances O Ateneu, de Raul Pompéia, e O cortiço, de Aluísio Azevedo». Recanto das Letras. Consultado em 4 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 14 de novembro de 2021 
  2. Lima Braga 2006, pp. 13-14.
  3. Melo, Adrián (3 de setembro de 2019). «Reeditan la primera novela del orgullo gay». Tiempo Argentino (em espanhol). Consultado em 1 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 19 de outubro de 2021 
  4. a b c d Arboleda-Ríos, Paola (2010). «Cartografías del deseo homosexual en la literatura brasilera. De antropofagia a homofagia o ¡El camino a Pindorama es gay!» (em espanhol). Ciberletras. Consultado em 3 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 29 de abril de 2018 
  5. a b Olivera Córdova, María Elena (agosto de 2022). «Los estudios de la narrativa sáfica latinoamericana». Inter disciplina (em espanhol). 10 (27): 28. ISSN 2448-5705. doi:10.22201/ceiich.24485705e.2022.27.82140. Consultado em 4 de dezembro de 2023. Cópia arquivada (PDF) em 4 de dezembro de 2023 
  6. Silva, Ana Beatriz; Maia, Helder Thiago (2021). «O lugar das relações sexuais entre mulheres na literatura do século XIX: Uma comparação entre O cortiço e Vertigem». Revista Athena. 21 (2): 10-18. ISSN 2237-9304. Consultado em 4 de dezembro de 2023 
  7. Porto 2016, pp. 82-83.
  8. Lima Braga 2006, pp. 15-17.
  9. Albuquerque 2014, pp. 3, 6.
  10. Barcellos, José Carlos (31 de dezembro de 1998). «Identidades problemáticas: configurações do homoerotismo masculino em narrativas portuguesas e brasileiras (1881-1959)». Revista do Centro de Estudos Portugueses. 18 (23): 7–42. ISSN 2359-0076. doi:10.17851/2359-0076.18.23.7-42. Consultado em 15 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 15 de agosto de 2023 
  11. a b Lopes 2017, p. 10.
  12. a b Defilippo, Juliana Gervason (2016). «Cíntia Moscovich e Carol Bensimon: a personagem homossexual feminina na literatura brasileira contemporânea». Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (49): 275–287. Consultado em 4 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 4 de agosto de 2023 
  13. Braga-Pinto, César (3 de julho de 2019). «Eccentrics, Extravagants, and Deviants in the Brazilian Belle Époque, or How João Do Rio Emulated Oscar Wilde». Journal of Latin American Cultural Studies (em inglês). 28 (3): 366–380. ISSN 1356-9325. doi:10.1080/13569325.2019.1653835. Consultado em 12 de agosto de 2023 
  14. a b Karolyne, Audryn (9 de dezembro de 2019). «Livros impróprios? Conheça 10 escritoras que trabalharam a temática LGBTQ+ em suas obras». O Globo. Consultado em 2 de dezembro de 2023. Cópia arquivada em 13 de agosto de 2022 
  15. Albuquerque 2014, p. 8.
  16. Castilho, Lucas (5 de julho de 2022). «5 autores essenciais para entender a literatura LGBT brasileira». Claudia (revista). Consultado em 3 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 22 de dezembro de 2022 
  17. Porto 2016, p. 85.
  18. Trofino Ohe, Ana Paula (2009). «Um giro "Pela Noite" gay em Caio Fernando Abreu» (PDF). Anais do SILEL. 1. Cópia arquivada (PDF) em 16 de novembro de 2023 
  19. Albuquerque 2014, p. 7.
  20. Júnior, Antonio. «A persistência do desejo - uma síntese da literatura gay brasileira». Consultado em 3 de dezembro de 2023. Cópia arquivada em 20 de outubro de 2023 
  21. a b Da Silva, Claudicélio (2020). «Poéticas do desejo e dos prazeres LGBTQ na Poesia gay brasileira». Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (61). Consultado em 24 de novembro de 2023. Cópia arquivada em 24 de novembro de 2023 
  22. Vieira, Erly (2 de novembro de 2006). «A desbundada poesia erótico-mística de Waldo Motta». Overmundo. Consultado em 24 de novembro de 2023. Cópia arquivada em 8 de dezembro de 2021 
  23. Torres, Bolívar (16 de outubro de 2016). «Livros com protagonistas gays apontam para naturalização do tema». O Globo. Consultado em 2 de setembro de 2023. Cópia arquivada em 6 de setembro de 2017 
  24. a b Rabelo, Alexandre (2019). «Gays criados por escritores héteros, e outros cavalos dados». São Paulo Review. Consultado em 2 de setembro de 2023. Cópia arquivada em 21 de julho de 2020 
  25. Filgueiras, Mariana (14 de julho de 2014). «Editoras apostam em literatura infanto-juvenil gay». O Globo. Consultado em 6 de agosto de 2023. Cópia arquivada em 2 de agosto de 2014 
  26. Williams, Holly (25 de maio de 2020). «Amora by Natalia Borges Polesso review – stories of love between women». The Guardian (em inglês). Consultado em 2 de setembro de 2023. Cópia arquivada em 20 de janeiro de 2023 
  27. «Victor Heringer». World Without Borders (em inglês). Consultado em 2 de setembro de 2023. Cópia arquivada em 9 de junho de 2023 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]