Aritmética modular

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Em matemática, aritmética modular (chamada também de aritmética do relógio) é um sistema de aritmética para inteiros, onde os números "retrocedem" quando atingem um certo valor, o módulo. O matemático suíço Euler foi o pioneiro na abordagem de congruência por volta de 1750, quando ele explicitamente introduziu a ideia de congruência módulo um número natural N.[1] A abordagem moderna da aritmética modular foi desenvolvida por Carl Friedrich Gauss em seu livro Disquisitiones Arithmeticae, publicado em 1801.

A cronometragem neste relógio usa aritmética módulo 12

Um uso familiar da aritmética modular é no relógio de ponteiro, no qual o dia é divido em dois períodos de 12 horas cada. Se são 7:00 agora, então 8 horas depois serão 3:00. A adição usual sugere que o tempo futuro deveria ser , mas o relógio "retrocede" a cada 12 horas. Da mesma forma, se o relógio começa em 12:00(meio-dia) e 21 horas passam, então a hora será 9:00 do dia seguinte, em vez de 33:00. Como o número de horas começa de novo depois que atinge 12, esta aritmética é chamada aritmética módulo 12. Em termos da definição abaixo, é congruente com módulo , então "15:00" em um relógio de 24 horas é exibido "3:00 "em um relógio de 12 horas.

Congruência[editar | editar código-fonte]

Dado um inteiro , chamado módulo, dois inteiros são considerados congruentes (ou côngruos) módulo , se for um divisor de sua diferença (ou seja, se houver um inteiro tal que ).

A congruência módulo é uma relação de congruência, o que significa que é uma relação de equivalência compatível com as operações de adição, subtração e multiplicação. A congruência módulo é denotada como:

Os parênteses significam que se aplica a toda a equação, não apenas ao lado direito (aqui ). Esta notação não deve ser confundida com a notação (sem parênteses), que se refere à operação módulo. Na verdade, denota o número inteiro único tal que e (ou seja, o restante de quando dividido por [2]).

A relação de congruência pode ser reescrita como

mostrando explicitamente sua relação com a divisão euclidiana. No entanto, o aqui não precisa ser o resto da divisão de por . Em vez disso, o que a declaração afirma é que e têm o mesmo resto quando divididos por . Isso é,

onde é o resto comum. Subtraindo essas duas expressões, recuperamos a relação anterior:

definindo .

Exemplos[editar | editar código-fonte]

Exemplo 1[editar | editar código-fonte]

No módulo 12, pode-se afirmar que:

porque , que é um múltiplo de 12. Outra maneira de expressar isso é dizer que 38 e 14 têm o mesmo resto 2—quando dividido por 12.

A definição de congruência também se aplica a valores negativos. Por exemplo:

Exemplo 2[editar | editar código-fonte]

pois , que é múltiplo de 12. Note que e tem o mesmo resto 2. Observe que também, utilizando o exemplo anterior, é inteiro múltiplo de 12, isto é , concordando com a definição inicial de relação de congruência.

Notação[editar | editar código-fonte]

Como é comum considerar várias relações de congruência com diferentes módulos ao mesmo tempo, o módulo é incorporado na notação. Mesmo a notação sendo ternária, a relação de congruência para um módulo fixado é uma relação binária. Isto deve estar claro se a notação for usada, em vez da notação tradicional.

Propriedades[editar | editar código-fonte]

A relação de congruência satisfaz todas as condições de uma relação de equivalência:

  • Reflexividade:
  • Simetria: se para todo , e .
  • Transitividade: Se e , então

Se e , ou se , então:

  • para qualquer inteiro (compatibilidade com translação)
  • para qualquer inteiro (compatibilidade com escala)
  • (compatibilidade com adição)
  • (compatibilidade com subtração)
  • (compatibilidade com multiplicação)
  • para qualquer inteiro não negativo (compatibilidade com exponenciação)
  • , para qualquer polinômio com coeficientes inteiros (compatibilidade com avaliação polinomial)

Se , então geralmente é falso que . No entanto, o seguinte é verdadeiro:

  • Se , onde é a função totiente de Euler, então —desde que seja coprimo com .

Para o cancelamento dos termos comuns, temos as seguintes regras:

  • Se para qualquer inteiro , então
  • Se e é coprimo com , então

O inverso multiplicativo modular é definido pelas seguintes regras:

  • Existência: existe um inteiro denotado tal que se e somente se é coprimo com . Este inteiro é chamado de inverso multiplicativo modular de módulo .
  • Se e existem, então (compatibilidade com o inverso multiplicativo e, se , unicidade módulo )
  • Se e é coprimo com , então a solução para esta congruência linear é dada por

O inverso multiplicativo pode ser eficientemente calculado resolvendo a equação de Bézout para —usando o algoritmo Euclidiano estendido.

Em particular, se é um número primo, então é coprimo com para todo tal que ; assim, existe um inverso multiplicativo para todo que não é congruente a zero módulo .

Algumas das propriedades mais avançadas das relações de congruência são as seguintes:

  • Pequeno teorema de Fermat: Se é primo e não divide , então .
  • Teorema de Euler: Se e são coprimos, então a , onde é a função totiente de Euler
  • Uma consequência simples do pequeno teorema de Fermat é que se é primo, então é o inverso multiplicativo de . De maneira mais geral, a partir do teorema de Euler, se e são coprimos, então .
  • Outra consequência simples é que se , onde é a função totiente de Euler, então desde que seja coprimo com .
  • Teorema de Wilson: é primo se e somente se .
  • Teorema do resto chinês: Para qualquer , e coprimo , , existe um único tal que e . De fato, onde é o inverso de módulo e é o inverso de módulo .
  • Teorema de Lagrange: A congruência , onde é primo, e é um polinômio com coeficientes inteiros tais que , tem no máximo raízes.
  • Raiz primitiva módulo n: Um número é uma raiz primitiva módulo se, para cada inteiro um coprimo com , existe um inteiro tal que . Uma raiz primitiva módulo existe se e somente se for igual a , , ou , onde é um número primo ímpar e é um inteiro positivo. Se existe uma raiz primitiva módulo , então existem exatamente tais raízes primitivas, onde é a função totiente de Euler.
  • Resíduo quadrático: Um inteiro é um resíduo quadrático módulo , se existir um inteiro tal que . O critério de Euler afirma que, se é um primo ímpar, e não é um múltiplo de , então é um resíduo quadrático módulo se e somente se

Classes de congruência[editar | editar código-fonte]

Como qualquer relação de congruência, congruência módulo n é uma relação de equivalência, e as classes de equivalência do inteiro a, denotada por , é o conjunto . Este conjunto, consistindo dos inteiros congruentes a  modulo , é chamado a classe de congruência ou classe de resíduos ou simplesmente resíduo do inteiro modulo . Quando o módulo é conhecido pelo contexto, este resíduo também pode ser denotado por .

Anel de classes de congruência[editar | editar código-fonte]

O conjunto de todas as classes de congruência módulo n é denotado ou (a notação alternativa não é recomendada por causa da possível confusão com o conjunto dos inteiros p-ádicos). E é definida por:

Quando , tem n elementos, e pode ser escrita como:

Quando n = 0, não tem elementos não nulos; daí é isomorfo a , pois .

Podemos definir adição, subtração e multiplicação em pelas seguintes regras:

A verificação que esta é uma definição adequada usa as propriedades mencionadas antes.

Desta forma, se torna um anel comutativo. Por exemplo, no anel , temos

como na aritmética do relógio de ponteiro.

A notação é usada, por que ele é anel quociente de pelo ideal consistindo de todos os inteiros divisíveis por n, onde é o conjunto unitário . Assim é um corpo quando é um ideal máximal, ou seja, quando é primo.

Em termos de grupos, a classe de resíduos é a classe lateral de a no grupo quociente , um grupo cíclico.[3]

O conjunto tem várias propriedades matemáticas importantes que são o fundamento de vários ramos da matemática.

Em vez de excluir o caso n=0, é mais útil incluir (que, como mencionado antes, é isomorfo ao anel dos inteiros), por exemplo quando discutindo característica de um anel.

Restos[editar | editar código-fonte]

A noção de aritmética modular está relacionada com a de resto da divisão. A operação de achar o resto é algumas vezes chamada de operação módulo, nesse contexto escrevemos, por exemplo, 2 = 14 (mod 12). A diferença está no uso da congruência, indicado por "≡", e da igualdade indicado por "=". Igualdade implica especificamente o "resíduo comum", o menor inteiro não negativo membro de uma classe de equivalência. Quando estamos trabalhando com aritmética modular, cada classe de equivalência é geralmente representada pelo seu resíduo comum, por exemplo 38 ≡ 2 (mod 12), que pode ser encontrado usando divisão longa. Segue disso que enquanto é correto dizer 38 ≡ 14 (mod 12) e 2 ≡ 14 (mod 12), é incorreto dizer 38 = 14 (mod 12) (com "=" no lugar de "≡").

A diferença é mais clara quando estamos dividindo um número negativo, porque neste caso os restos são negativos. Assim para expressar o resto devemos escrever −5 ≡ −17 (mod 12), em vez de 7 = −17 (mod 12), pois equivalência só pode ser considerada para resíduos com o mesmo sinal.

Em ciência da computação, o operador resto é normalmente indicado por "%" (p.ex. em C, Java, Javascript, Perl e Python) ou "mod" (p.ex. in Pascal, BASIC, SQL, Haskell), com exceções (p.ex. em Excel). Estes operadores são normalmente pronunciados como "mod", mas o que é efetivamente computado é um resto (pois em C++ são retornados números negativos se o primeiro argumento é negativo e em Python um número negativo é retornado se o segundo argumento é negativo). A função modulo em vez de mod, como em 38 ≡ 14 (modulo 12), é algumas vezes usada para indicar um resíduo comum em vez do resto (p.ex. em Ruby).

Os parenteses às vezes não são escritos na expressão, por exemplo 38 ≡ 14 mod 12 ou 2 = 14 mod 12, ou são colocados em volta do divisor, por exemplo 38 ≡ 14 mod (12). Notações como 38 (mod 12) também existem, mas são ambíguas sem um contexto.

Representação funcional da operação resto[editar | editar código-fonte]

A operação resto pode ser representada usando a função piso. Se b = a (mod n), onde n > 0, então se o resto é b ele é dado por

onde é o maior inteiro menor ou igual a , então

Se em vez do resto b o intervalo −nb < 0 é requirido, então

Sistema de resíduos[editar | editar código-fonte]

Cada classe de resíduo modulo n pode ser representada por um de seus membros, embora nós geralmente representemos cada classe residual pelo menor inteiro não negativo pertencente à classe (pois este é o próprio resto que resulta da divisão). Note que quaisquer dois membros de diferentes classes residuais módulo n são congruentes módulo n. Além disso cada inteiro pertence a uma e somente uma classe residual módulo n.[4]

O conjunto de inteiros {0, 1, 2, ..., n - 1} é chamado o menor sistema de resíduos módulo n. Qualquer outro conjunto de n inteiros, com nenhum par deles congruente módulo n é chamado um sistema completo de resíduos módulo n.

É claro que o menor sistema de resíduos é uma sistema completo de resíduos e que um sistema completo de resíduos é simplesmente um conjunto contendo precisamente um representante de cada classe de resíduo módulo n. O menor sistema de resíduos módulo 4 é {0, 1, 2, 3}. Alguns outros sistemas de resíduos módulo 4 são:

  • {1,2,3,4}
  • {13,14,15,16}
  • {-2,-1,0,1}
  • {-13,4,17,18}
  • {-5,0,6,21}
  • {27,32,37,42}

Alguns conjuntos que não são um sistema completo de resíduos módulo 4 são:

  • {-5,0,6,22} pois 6 é congruente a 22 módulo 4.
  • {5,15} pois um sistema completo de resíduos deve ter exatamente 4 elementos.

Sistemas reduzidos de resíduos[editar | editar código-fonte]

Qualquer conjunto com φ(n) inteiros que são primos com n e que são incongruentes entre si módulo n, onde φ(n) denota a Função totiente de Euler, é chamado um sistema reduzido de resíduos módulo n.

Congruências quadráticas (ou do segundo grau)[5][editar | editar código-fonte]

Considere a equação , onde , é um primo (ímpar) e . Podemos observar que e como é ímpar temos . Assim, a equação acima é equivalente a . Ao completarmos quadrados obtemos . Ao fazermos e , vem . Para descobrir as soluções da equação quadrática, basta descobrir as soluções da equações da forma . Pois se (lê-se "p divide a") obtemos desinteressante a equação e, por essa razão o que torna indispensável assumir que ("p não divide a") a fim de evitarmos soluções triviais.

Exemplo[editar | editar código-fonte]

Resolva a congruência .

Como e é primo ímpar temos que , no qual ao multiplicarmos a congruência em questão e completar quadrados obtemos . Com isso encontramos , onde ao resolvermos a congruência linear temos , enquanto a partir da congruência linear , obtemos . Dessa maneira, e são as únicas soluções incongruentes. De fato, se e . Se e .

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. http://www.ams.org/samplings/feature-column/fcarc-eulers-formula
  2. «Comprehensive List of Algebra Symbols». Math Vault (em inglês). 25 de março de 2020. Consultado em 12 de agosto de 2020 
  3. Arnaldo Garcia e Yves Lequain. Elementos de Álgebra - Rio de Janeiro, IMPA, 2002. 326 páginas (Projeto Euclides), ISBN 978-85-244-0190-9
  4. José Plinio de Oliveira Santos - Introdução à Teoria dos Números - Rio de Janeiro, IMPA, 1998. 198 péginas (projeto Euclides), ISBN 978-85-244-0142-8
  5. SAID, Sidki. Introdução à Teoria dos Números. Colóquio Brasileiro de Matemática, IMPA, 1975.